Para quem encontra o Deus das Pequenas Coisas
Por Christine Rondon, advogada.
O Deus das Pequenas Coisas me transformou um pouco mais do que eu esperava (porque todo livro nos transforma um pouco).
Mas esse foi o único romance que li na pandemia. E duas crianças gêmeas estão no primeiro plano da história, na infância e na vida adulta, sendo dois e sendo um só. E tudo se passa na Índia, com seu sistema político, suas religiões, suas castas e culturas tão distantes das literaturas que consumo. E a autoria é de uma mulher.
O deus das pequenas coisas permite ver beleza em uma realidade na qual as grandes coisas são negadas e se tornam impossíveis. As personagens estão num mundo no qual não é preciso morrer para que a vida acabe, onde nem todo mundo pode ser amado.Classes, gênero, religião e castas. O comunismo que não acolhe intocáveis, o patrão que quer organizar sindicatos e desafia o sistema de castas, os estupros de mulheres e crianças, as mulheres divorciadas devastando famílias…
Quão distantes realmente estamos de tudo isso? O suficiente para pensarmos no quanto isso nos parece chocante e, ao mesmo tempo, para logo ali adiante nos identificarmos com tantas coisas.
E tem os gêmeos, um grande eu que vai se tornando nós e um “eu” e “ele”. Uma existência conectada antes da vida. Uma linguagem própria, uma capacidade de sentir medo do pesadelo do outro, de confundir as memórias, de partilhar o mundo, uma conexão inexplicável que faz qualquer mãe de gêmeos ser carregada pela narrativa.
E tem uma mãe rigorosa, braba, que às vezes ama um pouco menos seus filhos (será?), mas que por trás de toda rigidez reside apenas amor e medo de perder os filhos, pois tem consciência da necessidade de provar a todos, o tempo inteiro, que pode ser pai e mãe de seus gêmeos em uma sociedade que não aceita sua fuga do marido bêbado e agressor. Ele é e sempre será um pai. Ela, uma divorciada. “Uma criança precisa de um baba”.
O resto é tragédia, mas também é caminho para quem encontra o Deus das Pequenas Coisas.
*Foto de capa apenas ilustrativa, da divulgação do filme Lion, uma jornada para casa.