Um espetáculo teatral: diálogo para solucionar os problemas fundiários envolvendo agricultores, indígenas e quilombolas no Estado do Rio Grande do Sul – O palco: Assembléia Legislativa do Estado – Os atores principais: senadora Ana Amélia Lemos, deputados federais do RS e fazendeiros vinculados à Confederação Nacional da Agricultura – Os Coadjuvantes: pequenos agricultores – As vítimas: povos indígenas e quilombolas.
Assim pode ser descrita a “audiência pública” convocada pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, realizada no dia 21 de outubro, em Porto Alegre, com o intuito de estabelecer um diálogo para a “busca de soluções à questão da demarcação das terras indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul”. No palco, dirigiu a cena a senadora Ana Amélia Lemos (PP), auxiliada pelos deputados estaduais Edson Brum (PMDB) e Gilberto Capoani (PMDB), e pelos de deputados federais Alceu Moreira (PMDB) e Luiz Carlos Heinze (PP), todos parlamentares do Rio Grande do Sul. E, como toda cena teatral reque r apoiadores, lá estavam representadas algumas instituições: Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag/RS), Federação da Associação dos Municípios do Estado do Rio Grande do Sul (Famurs), Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Ministério Público Estadual (MPE), a subchefe da Casa Civil do Estado Mari Peruzzo e ainda representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA). E, para aplaudir a performance dos protagonistas deste espetáculo, centenas de pequenos agricultores lotaram a platéia da Assembléia Legislativa.
Da “audiência”, cuja temática versava particularmente sobre os direitos constitucionais dos povos indígenas e quilombolas, representantes destas populações não participaram como convidados. Não bastasse isso, sua entrada, como espectadores, só se deu de maneira forçada sendo que quase não conseguiram adentrar no auditório Dante Barone. Nem mesmo a Funai, que havia sido convidada para a audiência, se interessou em informar e articul ar as comunidades indígenas da região. Por sua vez ela se fez presente no palco no espetáculo, mas representava, no enredo, o Governo Federal e seus interesses. Estava lá para prestar esclarecimentos sobre procedimentos de demarcação, para justificar a inoperância do governo, apesar de ter por obrigação constitucional criar e executar uma política indigenista e demarcar todas as terras indígenas no país.
O que desejavam os promotores desta audiência, com ares de espetáculo e direito a aplausos fervorosos e vaias ensandecidas, não era o diálogo e, muito menos, uma solução justa para o conflito fundiário que se estende por décadas, transformando a vida dos povos indígenas e comunidades quilombolas em um drama sem fim. A questão tomou proporções vultosas no estado do Rio Grande do Sul porque há segmentos importantes do agronegócio implicados. Por isso, a justa luta dos povos indígenas e dos quilombolas pela terra é vista como um “problema” que afeta o bem estar, a produtividade, o desenvolvimento do estado. No teatro que se encenou com a alcunha de audiênci a pública, o interesse era fazer uma demonstração de força, comprometendo os parlamentares com a “causa” deste segmento econômico e social, cuja intenção primeira é limitar os direitos constitucionais dos povos indígenas e dos quilombolas que lutam pela garantia da demarcação e o usufruto de suas terras.
E isso ficou evidente quando os personagens principais da peça teatral procederam à leitura de suas propostas para solucionar o problema no estado: a suspensão das demarcações de terras dos quilombolas e indígenas em áreas onde não há consenso (ou seja, todas as áreas indígenas, com exceção, por enquanto, dos barrancos de beira de estrada); revisã o dos decretos 1.775/1996 e 4.887/2003(que regulamentam as demarcações de terras indígenas e quilombolas); suspensão de todos os procedimentos administrativos de demarcação de terras em curso no Rio Grande do Sul; garantia de observância do devido processo legal e da ampla defesa (como se essas não existissem previstas decretos e na Constituição Federal); revisão da legislação indigenista e da Constituição Federal no que se refere à demarcação das terras indígenas e quilombolas; votação e aprovação da PEC 215/2000 (proposta de Emenda à Constituição Federal que visa transferir a autorização para demarcação de terras ao Congresso Nacional e não ao Poder Executivo) ; garantir assistência jurídica e antropológica aos produtores rurais; políticas públicas para as comunidades quilombolas e indígenas(essa proposta é porque alegam que o problema dos povos indígenas não é fundiário, mas social).
Os efeitos que se esperam do espetáculo não são, portanto, uma farsa. Longe disso! São reais e estão sendo dinamizadas em diferentes âmbitos, seja por representantes deste novo e articulado pelo movimento ruralista, seja por integrantes do próprio Governo Federal, especialmente da Casa Civil e do Ministério da Justiça. As propostas expostas ao final do último ato daquele bizarro espetáculo falam por si mesmas: são unilaterais, refletem o anseio de impor a vontade de certos segmentos econômicos aos direitos estabelecidos na Constituição Federal e, assim, são propostas que instauram uma insegurança jurídica, uma vez que colocam em questão o teor das leis e t ambém as instituições responsáveis pela sua execução.
O suposto diálogo, que deveria ocorrer nesta audiência realizada no espaço da Assembléia Legislativa do Estado é, então, um grande monólogo que expõe a vergonhosa intenção de restringir os direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas. Aliás, a teatralidade do evento parece refletir uma tendência que se expressa em âmbito nacional: a de considerar “problemática” a presença indígena e quilombola lutando pela posse e garantia de suas terras, desviando o foco do verdadeiro problema que é a omissão do Estado e a morosidade em fazer valer os direitos territoriais destes povos e comunidades.
Nesse sentido, a encenação do dia 21 de outubro em Porto Alegre não foi inédita e nem exclusiva. Ela será reprisada em todos os estados da federação. Haverá, de acordo com a realidade de cada região do país, algumas mudanças e/ou substituições de personagens, mas o conteúdo será o mesmo: alterar os dispositivos constitucionais que asseguram o direito a demarcação das terras indígenas e quilombolas. Iniciativas como esta, propagadas como um momento de “busca de solu� �ões” ou como um espaço democrático de participação e de expressão pública, nem de longe possibilitam que o público seja ouvido e, menos ainda, que os maiores interessados possam se manifestar.
O que ocorreu no Rio Grande do Sul, na verdade, foi uma grande demonstração de intolerância e de desrespeito: os indígenas e quilombolas tentaram manifestar suas posições e foram recebidos com vaias pela platéia. Mesmo estando em franca minoria, e mesmo sendo desrespeitados dentro da Assembléia Legislativa, espaço em que, teoricamente, se resguardam preceitos legais e se legisla, os indígenas e quilombolas exigiram um espaço para se manifestar.
O líder indígena Kaingang, Sr. Francisco dos Santos, sob muita vaia da platéia, disse: “Nós indígenas sofremos muito e fomos mortos e ainda estamos sendo mortos. Esse país, Brasil, pertence aos povos indígenas. O que eu quero é a demarcação das terras que sobraram. Eu respeito a terra dos brancos, a que eles compraram, mas eu não posso deixar a minha terra, mesmo que os brancos digam que a tenham comprado. Eu respeito a lei, mas não sou culpado se vocês embarcaram em um barco furado quando compraram terras que eram nossas, que nós vivíamos em cima delas. Todos nós sofremos e estamos aqui para dialogar. Mas nós indígenas e quilombolas precisamos defender nossas terras. Quero o que pertence para mim, pro meu povo. Vocês (os brancos) não respeitaram a natureza, não respeitaram os bichos, os peixes. Vocês terminaram com a minha natureza. Quero o meu direito que a Constituição determina. Eu vou até a morte. Os culpados são os políticos, os governos que assentaram vocês nas terras indígenas”.
Este pronunciamento emocionado, feito por uma liderança Kaingang, dá conta do sofrimento que tem sido imputado aos povos indígenas, sistematicamente perseguidos e desrespeitados pelos políticos que defendem exclusivamente interesses econômicos, que não encontram no poder público o amparo e a proteção que lhes é devida. O pronunciamento feito por um representante quilombola foi igualmente comovido, e expressou a profunda tristeza de ver que, em pleno século XXI, são ainda vistos como improdutivos, como ineficientes, como incômodos que não se moldam aos preceitos da vida para consumo.
E essa idéia se evidenciou claramente na audiência, quando esse representante fez referência, em seu discurso, ao fato de serem os indígenas e os quilombolas também agricultores, o que gerou uma estridente e prolongada vaia. Tal manifestação coletiva mostra o quanto aquele espetáculo e seus espectadores vindos em caravana estavam armados contra os povos indígenas e as comunidades quilombolas. As faixas espalhadas do lado de fora da assembléia também demonstravam a falta de abertura ao diálogo.
Os povos indígenas e as comunidades quilombolas são, na concepção da grande maioria dos políticos, governos e dos “produtores rurais”, um estorvo. Seus direitos tratados como penduricalhos e suas culturas consideradas atrasadas. Impera, nesta lógica de pensamento dominante, a idéia de que alguns são seres superiores e os demais povos e culturas precisam submeter-se aos seus interesses e ideologias. Lamentavelmente as vaias destinadas aos povos indígenas e quilombolas refletem o quanto a sociedade “branca” é intolerante e racista.
Por Roberto Antonio Liebgott, Cimi Sul – Equipe POA. Porto Alegre, 24 de outubro de 2011.