Matando o riso

Não tem muito o que dizer diante de uma situação tão horrorosa.

Mas também não dá para ficar em silêncio.

Eu me criei na França e lembro muito bem da primeira vez que comprei o Charlie Hebdo. Eu tinha 19 anos e tinha recém “fugido” da casa dos meus pais para morar sozinha. Um velhinho com rosto vermelho de tanto beber vendia ele na feira.

“E aí, menina, não vai querer a nova edição?”
“Pois é… Pior é que eu nunca li o Charlie Hebdo!”
“É mesmo? Então vamos fazer o seguinte: você compra, dá uma lida, e se não gostar, me devolve!”

Comprei a revista. Li ela inteirinho. E voltei na semana seguinte para comprar o novo número.

Naquela época, o Charlie Hebdo, além de me divertir entre as aulas, representava a irreverência, a independência e, sobretudo, a liberdade que eu tentava alcançar.

Nos últimos anos, os redatores e chargistas provocaram cada vez mais. As religiões (todas), a tal de “ética”, os políticos, todo mundo. E nem todo o mundo achava eles tão divertidos. Levaram bastantes críticas e até ameaças. A própria sede da revista foi incendiada em 2011. Mas sei lá. Eu continuava curtindo muito as charges do Charlie, e até aqui em Porto Alegre, quando um amigo me conseguia uma edição importada.

Melhor morrer em pé do que viver ajoelhado“, disse o Charb, diretor da revista.

Ontem, dia 7 de janeiro de 2015, três malucos fanáticos invadiram uma reunião de pauta da redação. Armados com metralhadoras, eles mataram o Charb e mais 11 pessoas – redatores, chargistas e até dois policiais. Um massacre.

E agora?

..

.

 

???!!!

 

Latuff

Obviamente, a conseqüência imediata de um atentado cometido por terroristas gritando “Allahu Akbar” é o crescimento da islamofobia e da extrema-direita – um fenômeno já preocupante em toda Europa.

Falei em cima de “três malucos” pois eu não acho que um atentado desses tenha muito a ver com religião. Aliás, de todos os muçulmanos que eu conheço, ainda não vi nenhum batendo palma – bem longe disso. Essa foi a obra de islamistas, sim, mas sobretudo de pessoas sem noção, daquelas que respondem a um desenho com tiros na cabeça.

 

“Desenhou um Muhammad glorioso, morreu.
Pintou um Muhammad divertido, morreu.
Rascunhou um Muhammad ignóbil, morreu.
Dirigiu um filme ruim sobre o Muhammad, morreu.
Resistiu ao terror religioso, morreu.
Chupou o cú dos fundamentalistas, morreu.
Tratou um obscurantista como um imbecil, morreu.
Tentou debater com um obscurantista, morreu.
Não tem o que negociar com os fascistas.
A liberdade de dar gargalhada sem restrição, a lei já dava, e a violência sistemática dos extremistas também dá.
Valeu, bando de idiotas.”

Charb, outubro de 2012.

Charlie - Catarse

 

O que aconteceu ontem não foi apenas um atentado à liberdade de imprensa mas também um atentado à liberdade de rir e divertir-se.

Eu sinto que esse caso vai muito além da França. Ele reflete uma coisa acontecendo no mundo todo: a instalação de uma sociedade de medo, de ódio, de enfrentamento, de intolerância, de violência enfim de burrice insuportável.

Durante muitos anos, no Brasil e em muitos países latino-americanos, sofria repressão quem desenhava, cantava ou brincava de expressar sua livre opinião.

Muitos então resistiram.

Agora chegou de novo a hora de decidir: levantar ou ajoelhar-se.

Ontem à noite, na França, mais de 100 000 pessoas saíram espontaneamente pra rua, para mostrar a sua indignação e manifestar o seu apoio ao que sobrou da revista.

Manif répu 7jan

Pois não se pode matar o riso. Né? Né??? Não se pode! PORRA!!!

 

Charlotte Dafol

 

 

Charges: Latuff e Joep Bertrams, 07/01/2015
Foto: France24

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