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O que de especial te motivou a trabalhar com as plantas alimentícias não-convencionais?
Foi a questão econômica e de sustentabilidade, mas também o prazer de fazer um trabalho novo, praticamente inédito, da forma como foi feito. Pensando numa alternativa, desde a sobrevivência na selva, na lida do campo, mas também numa perspectiva de geração de renda, empregos, conservação da natureza, porque hoje a gente vive uma monotonia alimentar. As PANCs, e nossa biodiversidade como um todo, seja ornamental, medicinal, madeireira são, muitas vezes, negligenciadas. Especialmente as alimentícias aqui no Brasil – se a gente olhar a nossa mesa, no que existe de cardápio nos restaurantes, dos self-service ou nas gôndolas dos supermercados e nas feiras, praticamente tudo é exótico, pouco é local, com baixa importância regional, nacional e, muito menos, internacional. O RS, mesmo sendo considerado um dos celeiros do Brasil, não está adaptado a futuras mudanças climáticas – e vários estudos internacionais vêm mostrando que as plantas regionais, as ditas plantas “daninhas”, as plantas espontâneas, são muito mais adaptadas [até por rotas metabólicas e fisiológicas diferentes] ao aumento do gás carbônico e da temperatura no ar, em comparação com as commodities agrícolas. Não estamos preparados para catástrofes e desastres ambientais, porque as pessoas não sabem mais o que comer do seu quintal. E isso é um ciclo vicioso. As crianças deveriam aprender desde cedo nas escolas que existem milhares de plantas que podemos comer. Isso deve ser rotineiro, para que as pessoas deixem de encarar como comportamento de pobre que está passando por carência ou comida para porco.
Muitas vezes, nas saídas de coletas que realizamos periodicamente, sempre aparecem curiosos. Eu já aproveito para fazer uma educação informal, mostrando o que é comestível, e mesmo assim, alguns ainda pensam que sou uma pessoa que está passando necessidade, porque estou catando um frutinho qualquer ali no mato. Precisamos quebrar essa tabu. Sabendo que determinada planta é comestível, você não mais a verá como mato. É preciso aprender isso: tudo foi mato um dia, até as pessoas descobriraem que aquilo se poderia comer, com as plantas mudando de categoria e inaugurando um novo paradigma alimentar. Só existe preocupação da sociedade quando ocorrem secas drásticas e as pessoas ficam sem uma planta folhosa local para comerem e precisam trazer de outras regiões. Se, por exemplo, estivéssemos plantando bertalha (e.g., Anredera cordifolia, A. krapovickasii – Basellaceae), como hortaliça aqui no RS e não o alface, os agricultores não estariam passando tantos problemas, porque são plantas que toleram o período de estiagem e co-evoluíram neste ambiente. A bertália foi um dos carros-chefe na minha pesquisa, ou espinafre- gaúcho, como preferi registrar popularmente, que você pode comer as folhas, muito rica em zinco, ótimo para memória, uma planta perene, mas que possui outra boa vantagem: além folhas como verdura, há as batatinhas áreas e também os tubérculos subterrâneos na pequena batata que ela produz que são legumes, com usos similares a batata-inglesa. Destes órgãos amiláceos foi descoberta uma substância nova, em 2007, de proteção para cavidade gástrica, que inibe a ação de tripisina [“Ancordin”]. Alguns estrangeiros queriam comprar cerca de duas toneladas de batata. Cadê o produtor? Não há cultivos racionais desta espécie no Brasil. E continuamos falando da nossa biodiversidade, mas comendo a biodiversidade dos outros continentes/países. Criamos vaca e galinha que não são nossas. Plantamos trigo, arroz, café, laranja, eucalipto e soja, e nada é do Brasil. Cadê a criação de anta, veado, mutum? Cadê o plantio de bertalha, ália, crem, jacaratiá… A domesticação do pêssego-do-mato? E tantas outras hortaliças e frutíferas silvestres com grande potencial agrícola e nutricional. Não existe. As pessoas valorizam tanto suas tradições em cada um dos nossos estados, falam bastante da biodiversidade, mas não a conhecem, e isso é riqueza abstrata. Se fala que a Amazônia vale trilhões. Vale nada. As pessoas estão passando fome lá. Muita gente vivendo precariamente, como aqui, na famosa Porto Alegre, com sua periferia cheia de pessoas comendo mal, sentindo frio ao dormir. Não adianta termos uma biodiversidade imensa na Região Metropolitana se não a comemos ou a utilizamos de forma sustentável para outros fins. Muito menos geramos divisas e empregos, porque ninguém planta. Nós somos xenófilos, gostamos do que é de fora, aceitamos de pronto. Meu intuito é fazer a extensão, a popularização, dessas plantas nativas e subsidiar outras áreas do conhecimento, não ficar uma ação isolada. Que a Agronomia possa estudar isso no aspecto fitotécnico e horticultural;, a Nutrição pesquisar a parte bromatológica;, a Química, a Bioquímica, a Farmácia com a parte toxicológica e fitoquímica. Ninguém pesquisa aquilo que não se conhece. Trazer à tona, resgatar e propor novas plantas para serem incorporadas na dieta humana conduz aos estudos transversais. E aí a importância, num trabalho básico desse como o nosso, de detalhar as plantas nativas. Mas friso que não se pode entender isso como uma verdade absoluta. É uma proposta em construção, que começa desde as experiências individuais dos pesquisadores envolvidos, nos relatos de pessoas que fazem uso tradicional, por dados de etnobotânica antigos. E será apenas um segmento da pesquisa, que servirá como subsídio para outras áreas de conhecimento.
E aí, o mais importante disso o que é? Ponderar o uso e ter diversificação. Por isso a ciência é dinâmica. Todas as plantas têm seus prós e contras, seus modos de preparo adequados, períodos de consumo, com maior ou menor sensibilidade das pessoas. Mas nós não podemos blindar as plantas não-convencionais por acharem que são mais tóxicas que as comuns que você tem no dia-a-dia. Há carência de pesquisa, pois o comum é pesquisar só aquilo que está badalado: o morango ou tomate. E não se pesquisa nosso juá nativo, que tem tanto ou mais licopeno que o tomate, porque nem se conhece. Por isso a necessidade da transdisciplinaridade e de fazer essa passagem para o uso real e efetivo da nossa flora diversa. Nós não sabemos nem quantas espécies temos no Brasil ainda – 50 mil?, ficando restrito à Botânica? Não há consenso, nem uma listagem garantida. Há hipóteses, mas nem isso a gente sabe. Não só a biodiversidade vegetal, mas animal também, que é mais paradigmática e cheia de tabus, com legislação cada vez mais engessada. necessitando ser revista com urgência, para que a nossa fauna alimentícia possa e deva ser criada de forma ecologicamente correta.
Estamos em uma área muito boa de se trabalhar. Eu pude fazer uma pesquisa aplicada e transferir isso para as pessoas. Esse é um tipo de trabalho que desperta bastante interesse, de compartilhar aquilo que você pode fazer no ponto de ônibus e dentro dos dele, na divulgação corpo-a-corpo, porque as pessoas entendem, sendo gratificante para o pesquisador poder conseguir explicar o que faz. Falo que trabalho com as plantas que existem por aqui no chão, em todo o lugar, que não são aproveitadas, mas que dá para comer, seja verdura ou frutíferas, condimentos e por aí vai. No entanto, uma área, infelizmente, carente de pesquisa e de editais de financiamento no Brasil. Nós temos uma biodiversidade muito grande, mas não a comemos.