Coletivo Catarse e Retomada Gãh Ré lançam o documentário “Nóg kirìg ãg tì / Nós, Guardiões da Mata”
Certo dia nos contou Iracema, os sonhos nos levam para lugares que a gente nem percebe. E questionou: “será que os cientistas não sonham?”. Como cientista social e co-diretor de Nóg kirìg ãg tì / Nós, Guardiões da Mata, posso afirmar que sim, este documentário foi dirigido por sonhos. Como bom anarquista, sempre tive dificuldades com a ideia de “dirigir”. Afinal, acreditamos que a direção deve ser de baixo para cima, tal como a subida do morro. Neste caso, o princípio zapatista “mandar obedecendo” talvez descreva melhor a tarefa que assumi: produzir um documentário sobre a luta do povo Kaingang no Morro Santana. Ao longo de quase três anos, me dediquei ao máximo para cumprir essa missão da maneira mais sincera possível — seguindo os conselhos da cacica, kujà e co-diretora Iracema Gah Té, mas, sobretudo, obedecendo aos sonhos que nos guiaram. No início do filme, advertimos: esta é uma história em curso, que só terminará de ser contada quando o território for assegurado aos seus verdadeiros donos. Mas não buscamos apenas narrar uma história, e sim atuar sobre ela, compreendendo o audiovisual como um dispositivo de transformação da realidade (e por que não, dos sonhos em realidade?). História essa que tem sido vivida intensamente pelo convívio do Coletivo Catarse com a Retomada Gãh Ré, ao longo dos últimos três anos, por meio do projeto CORAL. Mas é também continuidade de uma amizade mais longa com o povo Kaingang — uma relação na qual cada integrante do coletivo deixou uma marca singular. Para alguns, começou em 2002, com atuação do grupo que veio a fundar o Coletivo Catarse. O projeto “Índios Urbanos” documentou em VHS a luta da comunidade Kaingang Fag Nhin na Lomba do Pinheiro. Para outra parte do coletivo a história teve início em 2018, com o projeto Resistência Kaingang, quando Iracema guiou Clémentine Tinkamo, Billy Valdez e Gustavo Turck de Porto Alegre até Mangueirinha (PR), numa trilha seguindo os passos da luta de seu pai. Para mim, mais ou menos na mesma época, este roteiro começou a ser escrito em um sonho que me marcou profundamente e até hoje compartilhei com poucas pessoas. É difícil traduzir sonhos em palavras, mas tentarei: naquela noite, voei como um um condor que, de asas abertas, planava sobre as águas do Guaíba. No horizonte, a topografia granítica de Porto Alegre se desenhava. Voei em direção ao ponto mais alto: o Morro Santana, minha morada. E na pedreira, o coração do morro, pousei onde, em volta do fogo, um tipo de cerimônia acontecia… Acordei com a sensação de que algo havia mudado. Pouco tempo depois, acabei conhecendo Iracema e compreendi que não era um sonho só meu, era um sonho compartilhado. Na primeira vez em que subimos o morro juntos com Gah Té, também estavam lá os amigos da Witness e de um coletivo que estava nascendo: Preserve Morro Santana. Do alto do morro, Iracema alertou que os olhos d’água estavam secos e de alguma forma antecipou o pior: a noite, o morro ardeu em chamas numa das maiores queimadas da sua história. Ao mesmo tempo era confirmado o primeiro caso de Covid em Porto Alegre. Mas naquela manhã, no ponto mais alto da cidade, haviamos selado um pacto entre nós e o morro. Uma aliança com a natureza pela sobrevivência: o morro cuida de nós e nós cuidamos do morro. Dois anos depois, e tendo sobrevivido a uma pandemia, lá estávamos novamente. Iracema conta que seu avô Pedro Joaquim Gãh Ré lhe apareceu em sonho e através dele recebeu a missão de retornar ao Morro Santana para cuidá-lo e mostrar aos fògs o caminho de viver com a natureza. Por isso, a Retomada iniciada na noite de 18 de outubro de 2022 leva seu nome. Com a câmera em punho, estivemos lá, desde a primeira fogueira acesa no acampamento, aos pés do Morro Santana. Desde então, a chama não se apagou. Seguimos juntos: filmando, aprendendo e contribuindo em oficinas, caminhadas, manifestações, audiências, estudos, mutirões, festas, reportagens… E se deu certo, como diz Gah Té, “vamos continuar e continuar…”. Seguiremos filmando – e sonhando – até a vitória. SINOPSE Sob a liderança da cacica Iracema Gãh Té, uma comunidade Kaingang retoma seu território ancestral no ponto mais alto de Porto Alegre. Enfrentando a ameaça de um grande empreendimento imobiliário, a comunidade desafia o abandono do Estado e enfrenta uma poderosa família de banqueiros para defender as florestas e nascentes do Morro Santana.