por Clarisse Castilhos
O 8 de março -dia Internacional das mulheres- é uma data muito cara ao movimento feminista. Infelizmente o seu verdadeiro significado vem sendo transfigurado pelo patriarcado capitalista num dia festivo de comemoração.
Para a ideologia dominante o 8 de março é o dia de vender mais eletrodomésticos, cosméticos e flores para as “rainhas do lar”. Nós não queremos ser “rainhas”! O que temos para comemorar? A que “mulher” estão se referindo quando falam no singular, como se existisse uma mulher-padrão que nos represente a todas. Mas não aceitamos esse modelo criado pelo imaginário patriarcal. Entre nós existem as lutadoras e as submissas e, nesse intervalo, há uma grande variedade de comportamentos e de aparências. Somos camponesas, operárias, estudantes, artistas, intelectuais e donas-de-casa. Somos negras, brancas, lésbicas, heterossexuais; mulheres com um histórico comum de opressões enquanto classe mulher e com alguns conflitos específicos a cada categoria.
Não queremos a igualdade do sistema, pois não aceitamos ser condenadas à infelicidade cotidiana proposta pelo patriarcado capitalista para mulheres e homens. Aliás, o fato de algumas terem acesso à universidade ou serem herdeiras de grandes negócios, de assumirem cargos de chefia, presidências de países, não significa que exista igualdade. Conquistamos, sofridamente, alguns direitos, mas tratam-se apenas de igualdades legais que não retratam nossos cotidianos. A violência física e psicológica está presente no dia – dia nos nossos corpos e mentes. Os assassinatos de mulheres crescem aceleradamente em todos os países e levam o nome de feminicidio.
Faz sentido esperar apoio da justiça? Sabemos que as instituições que administram esses direitos funcionam segundo a ordem patriarcal: a queixa na delegacia (mesmo a das mulheres) é recebida com desconfiança, desrespeito e piadas; os juízes forçam conciliações impossíveis; a sagrada família desencoraja porque isso pega mal e assim a coisa vai.
Nós, mulheres que conscientemente nos colocamos contra esse estado de coisas, que estivemos presentes nas atividades dos dias 3 e 4 de março de 2010, organizamos ações conjuntas entre campo e cidade. Atacamos diretamente o capital porque sabemos que ele, junto com o patriarcado, andam de braços dados, são as duas faces de uma mesma moeda que se chama opressão da humanidade.
Quando permanecemos dentro de casa limitadas apenas às tarefas do lar e aos cuidados das crianças, tendo sexo sem prazer, muitas vezes forçadas, obedecendo e dependendo dos companheiros ou companheiras, aceitando o papel designado pelos homens mesmo dentro do ativismo, nós estamos servindo à manutenção da ordem patriarcal e com isso contribuindo para que o capital cresça e engula nossos sonhos e desejos.
Não há libertação possível com a relação de classes que mantém o capital. Não há libertação possível com a divisão social do trabalho entre homens e mulheres. São duas relações que se entrecruzam para a manutenção do poder instituído e, lembremos, levam à destruição da humanidade e da natureza.
O capital só se mantém dominando nossas mentes e criando espaços para novos investimentos e mais lucros. E quais são esses espaços? O controle das reservas minerais, dos combustíveis e das águas puras de nossos lençóis freáticos; a exploração extensiva de terras pelo agronegócio com a monocultura predatória e utilização de transgênicos e finalmente, com o crescimento das guerras e da violência urbana.
O Brasil, por sua extensão de terras, é um dos prediletos do agronegócio. Não é por nada que em 2009 atingiu o segundo lugar mundial na produção de transgênicos, que o PAC está inteiramente voltado para criar infraestrutura de apoio aos investimentos internacionais em regiões de grande extensão de terra, que o governo federal liberou a compra de terras em área de fronteira (caso da Stora Enzo, em Rosário do Sul- alvo da atividade do 8 de março de 2008 das mulheres do MST), que o governo do RS liberou terras para a plantação de cana, e assim por diante. Não é de surpreender ninguém que a primeira decisão do governo Lula foi a liberação dos transgênicos.
O objetivo do novo agronegócio é o aumento desmedido da produtividade para a criação de grandes estoques de grãos e de outros produtos agrícolas e de extração vegetal. Que fique bem nítido: o que buscam não é ampliar a oferta de alimentos, mas de matéria-prima industrial; de grãos para a especulação pura e simples e de biocombustível para a indústria automotiva. O “alimento” produzido nessas condições é extremamente maléfico à saúde humana e animal, mas é comercializado em larga escala porque pode ser vendido a baixo preço. Afinal eles serão consumidos apenas pela população pobre. Os alimentos orgânicos continuam sendo produzidos mas, nas atuais condições de mercado, são mais caros o que não se constitui em problema pois destinam-se ao consumo dos países ricos e das classes altas. Esta divisão representa uma ideologia fascista e eugenista, pois o papel dos pobres do mundo é apenas executar trabalho alienado e mal pago, servindo ao topo da pirâmide social.
Para aumentar a oferta de produtos agrícolas transgênicos, as multinacionais ocupam terras com monocultura, invadem a pequena propriedade, acabando com a produção das hortas familiares diversificadas e orgânicas, transformando a pequena agricultura e os assentamentos em simples fornecedores dependentes das multinacionais. A população que antes tirava a sua alimentação diretamente de sua produção se transforma em empregadxs mal remunaradxs ou desempregadxs. Sxs filhxs vão para a cidade servir de pasto para a prostituição, marginalidade e violência urbana.
Por tudo isto, nos dias 03 e 04 de março de 2010, as mulheres do campo e da cidade, escolhemos como alvo simbólico a empresa SOLAE, fundada em 2003 a partir de aliança entre a Dupont (produtora de agrotóxico) e a Bunge (multinacional de sementes e de comida industrializada): um dos maiores complexos de processamento de soja transgênica da América Latina.
Lá, na frente da empresa, cantamos nossas canções de libertação e, simbolicamente, amamentamos pequenos esqueletos, construídos em conjunto, ao ritmo de nossas conversas e sonhos de liberdade. Essas nossas “crianças” representavam xs filhxs amamentadxs por mães alimentadas por transgênicos. Essas mães que contra sua vontade, ou sem o saber, estão criando uma geração de doentes e sem ca
pacidade de pensar.
Mostramos nossos peitos sem silicone e, sem nos importar com padrões de beleza, afrontamos a moral opressora. Com esse gesto simples e transgressor buscamos conscientizar a população sobre o verdadeiro significado do agronegócio e sobre o poder patriarcal que nos coloca dentro de papéis bem delimitados: assexuadas e insatisfeitas mães de família ou prostitutas; empresárias ou trabalhadoras; todas feitas para servir ao mundo dos homens.
Esse nosso desvendar, retirou o véu da hipocrisia e procurou mostrar através de nossos corpos expostos, a trágica realidade que vivemos duplamente oprimidas pelas relações de trabalho e de sexo; pelos patrões e pelo cotidiano de submissão que vivemos dentro da estrutura familiar burguesa.
Nós, mulheres rebeldes, estamos juntas com as companheiras da Via Campesina e dos grupos urbanos que participaram dessa ação, e acreditamos que a luta contra o capital e contra o patriarcado é a mesma e o seu fim é a libertação humana.
Por isso afirmamos: é preciso ter muito peito para derrubar o capital!
Fotos: Jefferson – Coletivo Catarse