Nossa morte, na morte do touro

Nunca tinha ouvido falar de Ezio Flavio Bazzo, um senhor de cabelos e barbas brancas que escreveu um livro chamado A arte de cuspir (também escreveu outros), e que se apresenta: “Gosto de bisbilhotar a vida dos homens e das mulheres mais bem pagos do planeta. Isto me dá uma visão exata de quanto a terra ainda é um vasto e lúgubre prostíbulo. Sim, um prostíbulo com cinquenta ou sessenta putos cobertos de ouro e com milhões de panacas enterrados na merda…”

Nunca tinha ouvido falar até agora, quando recebo um email da Claudia Lulkin com um texto dele. Não gosto de algumas coisas: é preconceituoso, despreza. Mas ajuda a enxergar parte da estupidez humana.

A Claudinha, econutricionista vegana e educadora popular que tive a sorte de conhecer este ano, sabe que na morte do touro vai também a nossa: idiotas brincando de lança, sangue e morte. Por isso me entrega o texto, sabe que precisamos de palavras cortantes a se enfiar na carne dessas ideias imbecis que as pessoas reproduzem porque sempre foi assim e porque um dia alguém inventou que o assassinato de touros era cultura, e cultura se repete mesmo se for cruel, porque não é pra pensar, mas fazer e seguir matando e morrendo no prazer de ver a morte.

Finalmente proibiram as touradas na Catalunya

(para ler na íntegra o texto de Ezio, clique aqui)

… Domingo. Dezenove horas em ponto. As arquibancadas estão lotadas. Começam os rituais. O presidente dá o sinal de entrada. Vai iniciar o Primeiro Terço. Bandas, gritos, correrias, portões que se fecham. A troupe de matadores já se exibe na arena, um «não-sei-quê» de afeminado, com calças ridículas e apertadas que lhes salientam as nádegas e os genitais. Ainda não vi o touro, mas já torço por ele. Nas arquibancadas os vendedores de bebidas, chapéus, fotos de toureiros e de postais se apressam. Cada idiota puxa sua câmera fotográfica, seu binóculo, sua filmadora. É necessário registrar a espada enterrada no corpo do touro ou, por que não, os chifres do animal estraçalhando o corpo do toureiro. Sinto que desejaria imensamente assistir a uma tormenta de chifradas, de coices e de imprevistos. Penso involuntariamente em Apis, o touro sagrado dos egípcios. Quando um touro morria e era «entronizado» um novo, era dado às mulheres apenas um período de quarenta dias para visitá-lo. Durante essas visitas elas levantavam as roupas e lhe mostravam a vulva…

… Os dois mal encarados que me venderam os bilhetes na rua fumavam como loucos e pareciam ciganos. Os ciganos que Lorca, num surto lirico tanto elogiou em seu Romancero gitano.“El gitano es lo más elevado, lo más profundo, más aristocrático de mi país, lo más representativo de su modo y el que guarda el ascua, la sangre y el alfabeto de la verdad andaluza y universal..”.Verdade ou apenas a velha, frívola e conhecida tapeação dos intelectuais para com os fodidos e condenados da terra? Pelo menos os espanhóis de hoje, esse povo que até bem pouco tempo jogava gatos amarrados nas fogueiras de São João, não pensam e não sentem nada disso a respeito dos ciganos. Pelo contrário, se pudessem, os mandariam de volta para o país idílico e imaginário de onde vieram ou instalariam uma nova Treblinka para eles em algum rincão espanhol.

O portão é aberto e um touro mais preto que o azeviche entra em fúria, olhando para todos os lados, dando pequenos saltos como se fosse levantar vôo. Elege uma das bandeiras rosas e dispara contra ela. De seu nariz já escorre um líquido fumegante. Defeca, como se estivesse literalmente cagando para o mundo. Os toureiros se protegem atrás de paredes de cimento e de superstições… Ele ameaça enfiar os chifres no concreto, mas recua… Não é bobo. Os toureiros se exibem. Passos ensaiados para cá, passos ensaiados para lá. Parecem galos de briga depenados. O touro fecha os olhos e se lança sobre a capa vermelha. Não acha corpo algum. Derrapa na areia. Defeca. Dá uma rápida olhada para a platéia. Gritos. Silêncios. Cheiro de merda e de suor. O rabo para cima. Oitocentos quilos de ódio e de fel. A língua para fora. De sua pica escorre um jato de sêmen. Admiro-o por não ter vergonha de suas excrescências… Alguém das arquibancadas pede que o toureiro lhe corte as orelhas. La oreja… la oreja… la oreja…

… Nova investida. Os chifres passam a um milímetro das tripas do toureiro. Gritos. Assobios. Aplausos. Uma pequena interrupção para que entrem os dois cavalos, protegidos nas laterais por uma couraça e com vendas nos olhos. O touro se lança sobre um deles, enfia-lhe as duas aspas com tanta fúria que o levanta da areia. O cavaleiro, por sua vez, em seu exercício de crueldade, mete-lhe o arpão no pescoço e o cavalo permanece indiferente, como se não tivesse a mais mínima idéia daquilo que estava acontecendo. Torço cada vez mais para meu herói negro e solitário, mas percebo que já está entregue. Num novo assalto contra o cavalo caí de joelhos… Gritos, xingamentos… É evidente que para o touro esta é uma luta perdida. A organização do espetáculo não permitiria qualquer possibilidade de vitória para ele. Desfilar pela arena com o toureiro espetado nos chifres se esvaindo em sangue seria o fim. Soçobrariam os negócios, o sindicato dos toureiros e o pessoal dos Direitos Humanos iriam a ONU pedir providências. As poucas vezes que houve uma chifrada fatal foi mais por negligência da equipe do que por bravura do touro. Goya desenhou exaustivamente essa barbárie e Lorca a cantou em poemas e em prosa. Picasso e outros espanhóis, apesar do folclore cult que pesa sobre eles, não passaram imunes a esse costume sanguinolento. Rafael Guerra, conhecido por «Guerrita» organizou em 1896 uma espécie de tratado, em 5 vol. sobre a tauromaquia. E um tal de Pascual Millán, em 1888 escreveu em 258 páginas Escuela de tauromaquia de Sevilla y el toreo moderno, o que significa, em última instância, que essa loucura vem de longe.

O homem obeso, sentado ao meu lado, faz um esforço enorme para ver as horas em seu relógio de bolso. -Já se pasaron nueve minutos! Resmunga para si mesmo. E quando percebe que estou olhando para seu relógio acrescenta: un regalo de mi mujer. Disfarço o riso ao lembrar da frase de um gurú indiano que previnia: “nunca presenteie alguém com um relógio de bolso, porque isto simplesmente significa que você tem como certo que esse homem está acabado. O relógio é seu último presente e lhe servirá para saber quantas horas faltam para o sol se pôr…”

Acredito que já se foram outros nove minutos. Um dos matadores lhe crava

certeiramente duas «puyas», de onde, como de um vulcão, jorram dois jatos de sangue. Psicologicamente já está derrotado e a platéia pede agora que o matador cumpra seu papel metafísico. Outros dois dardos. Outros dois jatos de sangue. Um mugido que causa estremecimento na platéia. Os fotógrafos preparam as câmeras, as mulheres tapam os olhos, o toureiro coloca em cena os movimentos ensaiados por mais de mil vezes diante dos espelhos. Narcisista e vaidoso de merda! Prepara a espada.
Para mexer com a histeria da platéia, dá as costas ao touro que treme estático. Não entendo por que não o ataca agora. Tem dois chifres mais eficientes que qualquer espada. Poderia acertar-lhe os rins, a coluna, os pulmões, as costelas e acabar de maneira trágica com este espetáculo. Mas não atua. Decepciona-me. Depois de tantos anos, talvez já haja uma submissão genética nesses animais, uma ética e, por que não, até mesmo um forte instinto de morte. (No sentido freudiano, de ser atraído pelo próprio fim, pela desconstrução de si mesmo, uma espécie de fascínio diante da possibilidade de «deixar de ser», de ver cada osso, cada órgão e cada célula desintegrar-se no nada, quase uma vingança contra o porvir, contra todas as esperanças e contra a vida.)

“Uma hora após a morte – escrevia o narigudo Bergerac, em La mort d’Agrippine -, nossa alma (a alma do touro) desfeita será o que foi uma hora antes da vida…”

A multidão suspira. Aquele homenzinho estúpido se coloca agora diante do animal com a espada na posição do ataque. O touro parece hipnotizado e disposto só a seguir às orientações do amo. Este lhe diz alguma coisa, obriga-o a atacá-lo pela última vez… O touro obedece e recebe no corpo exausto a estocada final. Um palmo de aço enfiado em seu dorso. Urra, corcoveia, defeca, olha para a platéia perde visivelmente a moral, toma consciência de que aquela era realmente sua última tarde de maio. Palmas, assovios, gozos secretos na platéia. Os sádicos se agitam, tagarelam, parecem exorcizar naquele ato os próprios crimes e as próprias culpas. Aquele corpo, uns dez quilos a menos, desaba. O toureiro levanta os braços, dá uma corridinha afeminada ao redor da arena, se exibe para a platéia. As mulheres atiram-lhe chapéus, «pañuelos blancos», flores, camisas e outros objetos que ele recolhe, dá um beijo e os lança de volta, ao léu. Esse frenesi feminino não parece ser para o «macho» como todo mundo sempre pensou, mas pelo que a platéia identifica que há de feminino e de cruel nele. Um açougueiro se aproxima do touro agonizante e lhe enfia várias vezes uma faca na nuca. É a apoteose, o consummatum est, «el momento profundo, sublime, y hasta diré casi sobrehumano, del sacrificio taurino». Em outras palavras: o momento de máxima crueldade.

“El hombre – segue Papini – debe matar los elementos taurinos que hay en él: la adoración de la fuerza muscular agresiva y de la fuerza erótica, igualmente agresiva”.

A fanfarra reinicia sua marcha wagneriana, as arquibancadas se agitam e comemoram «la victoria de la virtud humana sobre el instinto bestial», enquanto entram na arena as três juntas de mulas cuja função é arrastar o cadáver pela porta dos fundos. E a mesma história se repete seis vezes. Sempre com touros andaluzes, pretos e da mesma raça transgênica, criados especificamente para esse fim. Deixei as arquibancadas com uma indignação contida e cantarolando a música (La corrida) de Francis Cabrel sobre a tremenda idiotice dessa exibição criminosa:

“… Si, si hombre, hombre / baila /”. Hay que bailar de nuevo / y mataremos otros / otras vidas, otros toros / Venga, venga a bailar…”

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