Por Eliana Mara Chiossi.
Talvez isto ocorra em outras cidades, mas em Porto Alegre testemunho um sintoma peculiar, que me incomoda até os últimos fios de cabelo. A vida em comunidade, nos condomínios principalmente, tem sido um constante andar no fio da navalha.
Parece que a máxima que conduz o comportamento geral é a de que vizinho bom é vizinho morto. Coletando histórias vividas por amigos e associadas com as minhas histórias, desconfio que existe uma certa “cruzada” infame contra a alegria alheia. Claro que muito do que ocorre está “baseado na lei” e isso parece bastar para que pessoas infelizes atormentem as pessoas que pretendem alguns momentos de felicidade e descontração.
Crianças de uma creche brincando no pátio irritam a paz de uma moradora que se diz escritora. Porteiros intrometidos olham no relógio quando as mulheres que vivem sozinhas chegam em casa depois de uma noitada. Vizinhos denunciam à polícia excesso de barulho. E casais felizes no sexo são vítimas de denúncias também. De modo que ao resumir este quadro me parece que vizinho bom é vizinho morto.
Dificilmente o vizinho incomodado faz alguma negociação com sua própria infelicidade, porque talvez seja difícil entender que estando feliz é mais fácil lidar com a felicidade alheia.
Estando feliz fico feliz com os adolescentes que vibram no andar de cima, com suas músicas e conversas ruidosas.
Estando feliz, curto saber que o casal ao lado tem vida sexual ativa e graciosa.
Mas, vizinho morto, vizinho doente, vizinho vivendo tragédia, este tipo de vizinho não incomoda e se transforma no mártir que vai alimentar o verniz de compaixão da comunidade.
Fico pensando que, vivendo sozinha como vivo atualmente, se eu morrer ninguém vai reclamar do silêncio absoluto. Alguns dias depois, reclamarão do mau cheiro, mas aí estarei livre de qualquer notificação por parte do condomínio.
Este desejo de que o vizinho tire o sorriso do caminho já me agrediu algumas vezes e fiquei assustada com o fato de uma vizinha ter chamado a polícia, me denunciando por perturbação da ordem, apenas porque numa tarde de domingo eu e um amigo cantávamos na sala da minha casa. E sou uma cantora de boa voz, de modo que, não, eu não estava perturbando a ordem por ser desafinada (o que seria talvez justificável, mas já diz a letra do samba que “se você disser que eu desafino, amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor…”).
A vida em si já nos entrega porções diárias e dolorosas de problemas e entraves. A vida já tem em si mesma problemas e desencontros garantidos.
Que motor daninho será esse que faz com que um ser humano olhe para o outro e não consiga suportar a cena da alegria, mesmo sabendo que toda alegria é passageira?