Filme realizado pela Comunicação Kuery (coletivo de comunicação Mbyá-Guarani) e Coletivo Catarse sobre a mudança das famílias da aldeia Petim para a tekoa Tape Porã. O trabalho foi realizado durante oficina de produção audiovisual junto ao Programa de Apoio às Comunidades Indígenas Mbyá-guarani e a Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária (FAPEU).
Assista o filme abaixo:
18 minutos, colorido, realizado entre outubro de 2013 e fevereiro 2014.
Primeira Terra é viabilizada aos Mbyá-Guarani – 23/10/2013
Petim. Beira da estrada. Poucos metros separam as famílias da aldeia indígena Mbyá-Guarani dos motores frenéticos que trafegam em alta velocidade pela BR-116. Os caminhões ameaçam silenciar as vozes daqueles que outrora tinham as florestas por morada. Membros de um povo cujo território ancestral remete às regiões sul e sudeste do Brasil, bem como em países limítrofes, áreas densamente ocupadas pela colonização europeia. Em poucas gerações, assistiram a redução drástica de seus espaços de vida. Contudo, mesmo nas margens das estradas e da sociedade dominante, suas vozes não se calam.
Aqueles que se aproximam do quilômetro 309 da BR-116 avistam os símbolos da esperança de diálogos menos violentos com o Brasil que se desenvolve: cestos coloridos feitos de taquara, animais esculpidos em madeira. Boa parte da matéria-prima para produção dos artesanatos é coletada nas matas que beiram as estradas. Nessas margens, os Guarani esperam não só pela aquisição dos artesanatos, mas também por condições de vida dignas para aqueles que estão nestas terras há milênios.
Petim é o nome do arroio atravessado pela BR-116 a 40 quilômetros de Porto Alegre, no município de Guaíba. Mesmo em condições adversas, os indígenas Mbyá-Guarani encontram elementos que compõem o seu jeito de ser, como as águas do Arroio onde se banham e pescam sob a ponte onde os motores não param, dia e noite. Na aldeia, comprimida entre a rodovia, as plantações de eucalipto, os arrozais e as criações da gado estão as casas, a escola indígena, a caixa d’água, e as crianças, homens e mulheres. Ali, os Guarani mantém seu modo de vida, sustentam a alegria que lhes dá força para seguir em frente. As roças da aldeia, diferentemente dos anos anteriores, não estão cultivadas. A mudança está próxima.
Quiçá Petim venha de pety, fumo na língua mbyá-guarani. Nomes de lugares com palavras guarani são abundantes na região: Guaíba, Jacuí, Arambaré, Tapes, Camaquã… Denominações que indicam a presença guarani na região quando da chegada da colonização, o que também é atestado por estudos arqueológicos que apontam a ocupação milenar guarani no sul do continente americano. Hoje, nas beiras das estradas, homens e mulheres fumam seus petyngua, cachimbos, instrumentos de proteção espiritual e comunicação com as divindades. Aguardam a oportunidade de afastar suas moradas da beira asfalto. Chegou o momento.
Com a conclusão da aquisição da primeira terra pelo Subprograma Fundiário do Programa de Apoio às Comunidades Indígenas, destinada às famílias do Petim, o 17 de outubro de 2013 é dia da mudança. O grupo de parentes se desloca para a nova aldeia, chamada Tekoa Tape Porã – “Aldeia Caminho Sagrado”. Um novo caminho para as pessoas que não se acostumaram com os roncos dos motores, e agora poderão estar mais perto de onde um dia não gostariam de ter saído: as matas e campos cultiváveis.
Para as famílias do Petim, aos poucos, a vida na beira da estrada vai sendo deixada para trás. A terra nova de Petim, localizada há alguns quilômetros da atual ocupação e que soma 153 hectares de terra, é vista pelos guaranis como um alento, conforme destaca o cacique da aldeia Arroio do Conde e também liderança do Conselho de Articulação do Povo Guarani no RS (CAPG), Santiago Franco:
– É uma alegria grande, principalmente para as famílias do Petim que estão lá na beira da estrada. É um momento importante e muito marcante. São muitos anos de luta, morando na beira da estrada, debaixo de lona, passando frio, passando fome muitas vezes, as crianças vivendo constantemente com riscos de atropelamento, caminhão passando, carro. O nosso trabalho hoje não é nada mais, nada menos do que uma continuidade de um trabalho de mais de 500 anos. Desde a histórica colonização, nós estamos lutando para reconquistar as nossas terras que foram tomadas, que foram tiradas do nosso poder. A terra não vai resolver o problema dos Guaranis como um todo, mas o pedacinho de terra que está sendo repassado para os Guaranis é importante. É um pedacinho de uma terra que era grande e que hoje está voltando para o poder dos Guaranis, para a gente ocupar e viver conforme a nossa cultura, para fortalecer a nossa cultura, o nosso jeito de ser Guarani.
A Tekoa Tape Porã é a primeira de oito terras que serão viabilizadas pelo Subprograma Fundiário. Para Maurício Gonçalves, presidente do CAPG, a conquista das terras vem de um longo percurso:
– É um trabalho de muitos e muitos anos de luta, essa foi uma conquista dos Guaranis. Se a gente não se esforçasse, se a gente não persistisse na luta de estar falando para os governos do nosso direito à terra, garantido na constituição; se a gente não lutasse por um PBA, escrito ali no kuatia, no papel, se não tivesse isso, não estaria acontecendo isso aqui. Então é uma luta que passo a passo a gente vem lutando. Tudo isso é uma soma de forças que levou com que a gente estivesse aqui hoje numa terra que está sendo devolvida para os povos Guaranis viverem conforme a sua vida.
Na nova localidade as famílias terão mais espaço para a manutenção do sistema de vida Mbyá-Guarani. Na terra, nova matas, açudes e áreas de roça garantirão certa autonomia para a subsistência indígena. Um baluarte da resistência, mas ainda o começo de um processo, como aponta Maurício:
– Não é para a minha família, não é só para a família do Pedro [cacique da aldeia Petim] que é importante, mas para toda a família Guarani, é uma conquista do povo Guarani. É o início desse programa, a gente espera que o último, o oitavo, seja uma alegria maior ainda. Esse é o principal objetivo lá na frente, esse é o primeiro, mas queremos chegar lá no oitavo. E é um momento importante onde a gente vai ver de fato a concretização do programa, de um programa que foi assumido pelo governo. E a gente está sempre com o pé atrás devido a esses ataques violentos que vem acontecendo contra os povos indígenas. Isso é gravíssimo hoje no Brasil. Hoje parece que o índio é o entrave para o avanço do Brasil. Esses ataques não se justificam. Qual é justificativa dos governos que falam que os indígenas são entraves para o desenvolvimento do Brasil? Porque nós indígenas somos dessa terra aqui, quando eles vieram nós já estávamos aqui, nossos antepassados já estavam aqui.
matéria publicada em: https://mbyaguaranibr116.org/artigo-1/nggallery/image/img_1387/