Por Tania Jamardo Faillace (escritora, jornalista e delegada da RP1 de Porto Alegre)
Publicado originalmente em Minha Cidade.
A ideia de transformar o Cais Mauá, no Centro de Porto Alegre, em qualquer coisa que não um porto, foi-nos apresentada ainda no primeiro semestre de 2009, no Forum Regional de Planejamento 1.
São oito Foruns em Porto Alegre, que, em tese, constituiriam o controle social do planejamento na cidade, mas que, uma vez que não têm acesso aos orçamentos nem poder de veto, acabam na base do aconselhamento, e, quando seu representante no Conselho do Plano Diretor é realmente representativo, têm direito a um voto.
Esses oito votos, de fato, submergem dentro dos votos das entidades, quase todas elas ligadas ao setor econômico da construção e da corretagem, e/ou ao setor governamental, e que sempre votam juntas. Mas isso ao nível do Conselho do Plano Diretor, uma instância mais elevada.
Ao nível dos habitantes de Porto Alegre, as regionais agregam vários bairros e distritos. O de número 1 abrange dezenove bairros da área mais populosa da cidade, a partir do bairro Centro, onde se encontra o Cais Mauá.
Pois bem, lá pelas tantas nos apresentaram um projeto que não é projeto, pelo menos não projeto arquitetônico ou urbanístico, mas um projeto de engenharia financeira, para conseguir algum rendimento de um cais que, inexplicavelmente, foi desativado pelo governo do Estado.
O Cais Mauá é bem equipado e nunca se conflitou com a área urbana e o bairro Centro. Pelo contrário, já foi ponto de atração para os moradores, os turistas, as escolas, pelo atraque e visitação a navios mercantes de várias nacionalidades, navios-escolas, navios militares, navios de pesquisa oceanográfica etc.
A paixão pelo rodoviarismo, instituída com o advento das montadoras de carros que inundaram o País nos idos dos anos 1960, e continuam aqui – após suas matrizes terem quebrado financeiramente no resto do mundo, e elas viverem de esmolas governamentais – acentuou-se no Rio Grande do Sul com a instituição da indústria do pedágio nos idos dos anos 1990. Se uma carga paga preços exorbitantes para ser carregada e ainda é onerada com os pedágios ao longo de todo o seu trajeto, e muitos se sentem felizes com isso, por que racionalizar o transporte e reativar os portos, aliviando e protegendo as estradas do tráfego pesado e abusivo?
É isso o que está no fundo da proposta de transformar o Cais Mauá numa área comercial como qualquer outra, com um gigantesco estacionamento para 5 mil carros – congestionando ainda mais o fluxo de veículos no bairro Centro – ensejando mais alguns shoppings, supermercados e edifícios de escritórios, enquanto, no mesmo bairro, há cerca de uma centena de prédios comerciais desocupados, à espera de algumas reformas.
Para quem não conhece Porto Alegre, seu Centro é afunilado, isto é, converge para ele um número muito maior de veículos do que suas vias comportam, porque há um estímulo da Municipalidade ao estacionamento nas pistas de rolamento mediante aluguel temporário, os famosos e famigerados parquímetros, caça-níqueis oficiais, que ajudam a perpetuar a insanidade do transporte individual sobre rodas numa metrópole.
O projeto, apresentado pela presidência da Caixa RS, ligada ao Banrisul, segundo nos foi apresentado tanto na RP1, como na Câmara de Vereadores para a votação dos vereadores amigos do concreto, se baseia num sistema de arrendamento e sub-arrendamento.
O porto é de propriedade da União. Esta o arrendou para o Estado com contrato vigente até mais treze anos, o qual pode ser renovado ou rescindido conforme o interesse dos parceiros. Tratando-se de uma área ribeirinha a curso d’água navegável, não pode ser vendido nem doado nem penhorado.
Assim, a idéia poderia ser somente o arrendamento dos prédios que lá existem, sem mexer na estrutura física do porto, que já deveria ter sido tombado, pois faz parte do Centro Histórico de Porto Alegre e integra sua paisagem tradicional.
Mas alguém resolveu contemplar também o empresariado da construção além dos favorecidos supermercadistas. Concebeu alterar seu regime urbanístico, além das normas do Plano Diretor da Cidade, antecipando-se à homologação de sua revisão, realizada no segundo semestre de 2009, e propôs dois ou três espigões com 100 metros de altura (mais ou menos 30 andares), quando o limite em Porto Alegre é 52 metros.
Também haveria outros prédios um pouco menores (30 metros) acotovelando-se com a Usina e a Chaminé do Gasômetro, verdadeiro emblema paisagístico e turístico de Porto Alegre na Ponta do Gasômetro, que perderia sua singularidade e comprometeria a identidade visual da cidade e sua orla.
Os prédios de 100 metros, de frente para o famoso pôr de sol do Guaíba, certamente o tapariam para o resto da cidade que lhes ficasse atrás. Foram situados imaginariamente no local mais tumultuado da ponta do Centro: do outro lado do dique contra as cheias, a poucos metros da elevada da Rodovia Castelo Branco e da Estação Rodoviária de Porto Alegre.
Não sendo isso suficiente, também ficariam do outro lado da linha do Trensurb, trem metropolitano, absolutamente inexpugnáveis e inalcançáveis, juntamente com o estacionamento, a não ser pelo portão principal do cais, a uns dois quilômetros de distância, sem falar dos riscos de enchentes e subidas do rio, uma vez que estariam além do dique protetor.
Por essa excepcional oportunidade, o empreiteiro não teria a propriedade do terreno, mas apenas o arrendaria por sessenta anos, com perspectiva de mais sessenta de prorrogação, quando então os imóveis de cem metros, arquicentenários, voltariam ao poder público. Não sendo proprietário dos imóveis, o infeliz empreiteiro não poderia vender suas unidades, apenas também arrendá-las. E o ocupante dos prédios, sujeitos à trepidação do intenso tráfego local, com conseqüente taxa de ruídos e poluição sonora e aérea, tampouco poderia tornar-se um feliz proprietário, apenas um inquilino, a ser compulsoriamente despejado em 120 anos – o que, afinal, não seria uma desgraça completa.
Ora, nós, moradores de Porto Alegre, e mili
tantes comunitários, temos idéias melhores e muito mais viáveis e até rentáveis economicamente, como a recuperação do transporte hidroviário para atracamento no Cais Mauá, que tem calado suficiente para grandes navios. Esse transporte poderia estender-se ao transporte de passageiros na bacia do Guaíba e Lagoa dos Patos, e mesmo entre os bairros ribeirinhos. O que não impediria que esse porto tivesse atrativos culturais e turísticos. Pelo contrário.
Falam de Puerto Madero, na Argentina. Está falido, todo o mundo sabe. E só poderia falir. Qual a graça de um porto sem navios e sem movimento portuário? As casinhas coloridas, que parecem pano de fundo para um bailado infantil? Esses grandes espetáculos artificiais, sem relação com a vida real das pessoas e suas cidades, acabam cansando, viram cenário sem função, puro teatro. Dubai também quebrou, não é mesmo?
Fotos: Tânia J. Faillace, década de 90.