Fomos a Bagé: conflito que se desenha por área de quilombolas deflagra mais do que o aparente

Domingo, 3 horas da manhã.
Estamos parados em meio ao metro quadrado mais caro da capital do Rio Grande do Sul. Antes, passamos na avenida de um shopping classe A, por concessionária da Mercedes e por um McDonald’s.
Deu pra ver algumas mansões, alguns condomínios horizontais que, de fora, mais parecem grandes prisões – chiques -, pela altura de seus muros.
O sono pegando forte, afinal, ontem havia sido sábado e a viagem de domingo não fora planejada.
Mas lá estávamos nós, uma equipe do Coletivo Catarse, Gustavo, Valentim e Bolivar, parados em frente a uma obra embargada, um “prédio pros filhos dos bacanas” – ouvimos isso outra vez que estivemos por ali.
Na contemplação daquela noite quieta, impossível não mirar à esquerda a grande placa que dá a entrada naquele que talvez seja o grande símbolo contemporâneo da luta popular e da resistência nos espaços urbanos aqui do sul: o Quilombo da Família Silva.
Entre um mate e outro, conversa indo sobre o que encontraríamos no nosso destino, eis que chegam as lideranças do Movimento Negro Unificado e outro do próprio Quilombo.
Pronto, podemos ir!
Foram cerca de 4 horas de estrada até Bagé – o mais novo ponto de disputa por território que vem contrapondo os ávidos defensores do ruralismo aos pequenos e ao trabalho do INCRA (clique aqui para ler nota oficial).
Saímos do asfalto e entramos em uma estrada de chão batido, 15 quilômetros mais tarde, uma barricada com grandes galhos impedia a nossa passagem, mais adiante era possível perceber um acampamento num entroncamento da mesma estrada.
Arrastamos uns galhos, passamos pelo canto, crianças que estavam escondias correram pra avisar alguém de alguma coisa e cruzamos pelo acampamento onde um casal tomava um mate.
Nos olharam, não cumprimentaram – o que seria de praxe pelas bandas do interior.
Dobramos à esquerda, seguimos, atrás de nosso comboio apareceu um quarto carro, ou melhor, camionete, estranho a nosotros.
Chegamos ao nosso destino, e aquele último, com a certeza de sua missão cumprida, passou, olhou, fez a volta e sumiu pelo caminho que viemos.
Lá, no agora Quilombo das Palmas, fomos recebidos e colocados em uma roda embaixo de um pequeno capão de mato, atrás de uma simples casa, circundados por gatos, cachorros, cabras, vacas e tudo mais o que a natureza pode nos proporcionar de um cenário bucólico como este.
Na conversa, os representantes de movimentos de resistência afirmaram seu apoio na luta pela demarcação das áreas de quilombo – que vão, para além dos trezentos e poucos hectares já existentes, segundo laudo antropológico, aumentar em mais de 400 hectares a área daquelas 42 famílias.
Causou “estranheza” – claro que não! – a todos o fato de que, por já 13 dias, aqueles ruralistas estariam fazendo barricadas em via pública, teriam impedido o trabalho de um órgão federal como o INCRA e constrangido não só trabalho da Procuradoria do MPF, mas a vida de todas aquelas pessoas que passam por ali, amigos, parentes ou simplesmente passantes, e absolutamente nada foi feito no sentido de se resolver a situação.
Fossem os “times” trocados, fosse o movimento social no lugar dos ruralistas e certamente, no primeiro dia, até helicópteros da Brigada Militar estariam sobrevoando o local – esta era a visão unânime de todas as lideranças presentes na reunião.
Após os encaminhamentos e um belo almoço, saímos de volta, rumo a Porto Alegre.
Na passada pelo local do acampamento, já não eram somente duas, mas umas vinte pessoas. No cenário montado, dava pra perceber um pernil de ovelha assando e latas de cerveja espalhadas – tudo muito normal, inclusive. A barricada já não existia mais.
Enquanto os membros do nosso comboio passaram, o dever nos fez parar, descer e conversar.
Nos atendeu para uma entrevista aquele que havia nos seguido lá, às 8 horas da manhã, até a entrada da área quilombola.
“Nosso problema não são os negros, é com o INCRA!”; “O INCRA está colocando o negro contra o branco, o pobre contra o rico!”; “Por que eles querem fazer uma associação? Por que dar as terras para uma cooperativa? Por que não deixar a terra no nome dos que já estão aí?”; “Nunca teve quilombo aqui! Quilombo é área de escravos que fugiram. Aqui, esse pessoal sempre esteve aí.”; “Pra que mais 400 hectares? É o MST travestido por trás disso…” – e por aí iam as colocações.
Estávamos cercados, impossível não dizer que nos sentimos coagidos, mas fomos, sim, respeitados pelos ruralistas, nos identificamos enquanto comunicadores que exploram o ponto-de-vista dos movimentos sociais e retornamos a Porto Alegre.
Na bagagem, cerca de 2 horas de material captado em vídeo, depoimentos dos dois lados e a certeza de que ali, por detrás da cortina da desapropriação de terras, se desenha mais um desdobramento evidente do que está acontecendo no Brasil: a LUTA DE CLASSES.

Alguns dos presentes na reunião: na mesa, nossa arma, a câmera, ao fundo, Valentim e Bolivar são participantes, por detrás desta foto está o meu olhar.

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