A forma do filme proporcionando ação de cidadania. É esse espírito de form+ação a soma que vibra pulsante na alma de Moira Toledo, experiente jovem cineasta educadora que circula estusiasmada há dez anos pelas “quebradas” do Brasil ministrando oficinas de alfabetização audiovusual.
Sua tese, literalmente falando, pois ela acaba de finalizar a pesquisa do Doutorado em Cinema pela ECA/USP, é propor o processo do fazer cinematográfico como um potente suporte pedagógico de transformação autônoma do indivíduo, principalmente para a juventude nas comunidades de periferia ainda apartadas de espaços culturais que integrem artes sofisticadas como o cinema. Para ela, o aprendizado audiovisual é uma disciplina multi relacional, que consegue trabalhar com diversos problemas de convivência em grupo, porque integra várias inteligências como a musical, viso-espacial, corporal-cinestésica, linguística e, até, matemática e física.
“Afinal, a fotografia é composta em frações, ou seja, numerações e equações”, engatilhou Moira para a platéia atenta de 115 professoras de escolas da rede pública municipal de Porto Alegre que participaram, neste sábado 10, do Curso Intensivo de Cinema e Educação, parceria entre a Secretaria Municipal da Cultura (através das suas coordenações de Cinema, Vídeo e Fotografia e Descentralização da Cultura) e a Secretaria Municipal da Educação. A atividade dá largada às ações previstas para 2010 no projeto Programa de Alfabetização Audiovisual, que há dois anos promove uma série de ações voltadas para o aprofundamento e a ampliação da relação da linguagem audiovisual no universo escolar, entre as quais está o Festival Escolar de Cinema Brasileiro, programado para outubro próximo.
O Coletivo Catarse esteve lá, interessado que é na área de formação cinematográfica, já que ministra de forma ininterrupta oficinas em diversos espaços de multiplicação cidadã. Aproveitamos, para no final do curso, entrevistar Moira.
Queríamos um pouco da tua história, saber por que escolhestes atuar na área de formação audiovisual popular.
Sou uma pessoa muito envolvida com as mazelas do mundo. Desde muito novinha decide que qualquer coisa que eu viesse a fazer na minha vida iria ser para transformar a sociedade de alguma forma. Então fiz todo um percurso particular, desde a adolescência trabalhando com movimento estudantil, minha juventude nos partidos, envolvida com política diretamente, fui fazer faculdade de Ciências Sociais e quando cheguei na ECA para estudar Cinema eu pensei: agora, sim, vou mudar o mundo. Mas rapidamente entendi que não se mudava o mundo fazendo filmes.
E descobri a educação audiovisual por acaso, porque fui chamada para dar uma oficina. De cara fiquei muito interessada, mas não sabia nem se teria jeito para isso – a existência de muitos professores na minha família me estimulou. Dei a oficina, senti um impacto grande na vida dos meninos com quem trabalhei e pensei: Para aí! – de tudo que fiz na vida, foi onde senti que eu fazia alguma diferença. Assim, hoje, consigo satisfazer essa minha demanda de ser feliz e cumprir minha obrigação transformadora. Não existe nada mais maravilhoso do que entrar numa sala, por exemplo, como essa e trabalhar com 120 professores de escolas públicas, porque sei que cada informação vai para um canto – o impacto de médio prazo é algo que nunca vou saber, mas a certeza é que a semente da transformação está brotando. E isso é muito importante para mim.
E por que alfabetizar em linguagem cinematográfica jovens das quebradas, expressão que você usa para o público com o qual trabalha nas comunidades de periferia pelo Brasil?
São muitas. A importância óbvia é a que ao promover a alfabetização audiovisual você cria novas formas de se ler os meios de comunicação e nessa ação direta você faz com que os jovens deixem de ser meros depositários da televisão e receptores sem crítica – essa talvez seja a principal. Mas, para mim, como base dessa transformação existe uma característica toda especial do processo cinematográfico que é o de integrar na sua realização diferentes tipos de inteligência, especialmente as pessoais e interpessoais, isso coloca ao aluno uma outra forma de estar no mundo com o seu círculo de relações. Se esses jovens vão se tornar cineastas isso é um efeito colateral, mas, certamente, na minha expectativa, ele terá chances de conseguir lidar melhor com as pessoas, respeitá-las com generosidade e estar atento aos problemas do mundo aprendendo a fazer filmes, o que me deixa muito feliz.
Qual a colaboração desses filmes de quebradas para o conjunto da produção cinematográfica nacional?
Esses vídeos ainda não fazem parte de alguma escola cinematográfica, sequer consigo dizer que existe um cinema de quebrada, eu sou um pouco reticente a essa idéia. Existe uma intenção de fazer esse tipo de cinema, mas ele é muito pouco afinado e uniforme em termos estéticos. Há um movimento, mas não um cinematografia e se cobrássemos isso dessas produções seria exigir um pouco demais de uma construção que tem somente dez anos e ainda está marginalizada socialmente. Ainda não é o momento de se pensar numa projeção maior, pois haveria uma pressão sobre erros técnicos que ainda são bem evidentes e isso pode boicotar todo o desenvolvimento ulterior que essa produção pode vir a ter. Ainda se está numa situação de bastidores e isso é bom porque está amadurecendo, melhorando e quando um grande filme surgir ele conseguirá botar luz em todos os outros, mas no momento essa luz seria sobre as falhas. E é bom que o movimento ainda fique assim quietinho, de escola em escola, de comunidade para comunidade. Se puséssemos os filmes hoje na televisão eles não teriam impacto, as pessoas não enxergariam novidade pela imperfeição que os trabalhos ainda têm aos olhos do público mais geral. A linguagem está amadurecendo mais rápido do que a técnica, mas chegará o momento em que elas vão se encontrar, espero que num longa metragem de quebrada.
Na tua fala aos professores, diversas vezes falastes sobre a “glamourização” do cinema como uma característica de mão dupla, podendo servir para atrair ou decepcionar os alunos de comunidades pobres a descobrirem a linguagem audiovisual. Mas será que não existe uma forma de despirmos o cinema desse espírito de glamour, tanto para ensinar como para realizar, e ficarmos livres desse impasse?
Existe uma diferenciação desse glamour do cinema de elite do lá na quebrada. Entre a capoeira, as artes plásticas, o grafite, a dança e a música, o cinema de periferia encarna um certo encanto, como sendo aquela arte que é a mais difícil, a mais cara, o que ninguém pode, o que dá acesso aos melhores empregos caso eles venham a se profissionalizar. O lado positivo desse glamour da quebrada é que quando você consegue chamar com habilidade esses jovens para o cinema, eles vêm. É claro que eles conhecem o glamour elitista da Rede Globo ou Hollywood, mas quando eles passam a entender de que tipo de cinema estamos querendo ensinar essa projeção das celebridades vai sumindo, pois eles já estão apaixonados pela arte que é possível eles fazerem. O glamour, como sentimento de atração, para nós oficineiros trabalharmos de antemão, é algo que não se deve desperdiçar, só que ele é tão falso que conseguimos broxá-lo no primeiro dia de oficina e aí vamos para o que realmente importa que é o trabalho braçal, de sangue nas veias, ralação, de carregar, fazer e acontecer. Mas, talvez, o que exista até nesse tipo de cinema é um apoderamento charmoso do momento da exibição, que é algo realmente diferenciado, quando seu trabalho vai a público. Só que é tão localizado e específico que isso se torna útil, sabe? Ele existe, é atávico, intrínseco e eu uso ele para facilitar a vinda do aluno para dentro da aula. Mas todo o resto é negativo, porque mexe demais com o ego, aumenta expectativas que não vão ser correspondidas de modo algum, por exemplo, num levantamento que fiz para a minha tese de doutorado verifiquei que somente 11% desses alunos buscam a profissionalização na área. Mas te garanto, dificilmente um aluno meu está na sala de aula sem querer. Eu sempre digo assim: com o cinema você tem tudo para começar a aula com platéia ganha e daí por diante eu vou desconstruindo isso do glamour, o que para mim também é muito bom.
Quem é:
Moira Toledo coordena desde 2004 o projeto Formação do Olhar do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, desenvolvido na periferia da capital paulista, e é Supervisora Pedagógica das Oficinas Tela Brasil (realizadas pela cineasta Laís Bodanzky). A partir dessa experiência, Moira vem desenvolvendo metodologias que facilitem o trabalho de educadores interessados em trabalhar com cinema em sala de aula.
Atuou como Coordenadora Educacional do Instituto Criar de TV e Cinema (2006), como professora e colaboradora pedagógica das Oficinas Kinoforum (2003-05), e como consultora artística e pedagógica da Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André (2007-2009). Atuou também como curadora do aLucine – Toronto Latino Film and Vídeo Festival, em 2003, onde participou também como júri em 2005 e 2006.
É a mantenedora do acervo cinematográfico Kinooicos, que conta com mais de 300 vídeos realizados em oficinas culturais.