Jornalismo B
Cobertura da greve dos rodoviários: criminalização, novas lembranças e velhos esquecimentos
A greve desencadeada pelos rodoviários de Porto Alegre nesta semana inclui em seu contexto geral uma série de características que demonstram a complexidade da disputa política, por um lado, e, por outro, a oposição inconciliável entre as elites e a classe trabalhadora. Também tem ficado patente mais uma vez, neste movimento e em suas repercussões, a natureza antipopular do setor dominante da mídia local.
O movimento grevista exige 14% de aumento, reajuste no vale-alimentação e redução da jornada. Buscando melhoria nas condições de trabalho, os rodoviários construíram uma greve que paralisou 70% da frota de ônibus municipais. Demonstrando truculência, a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), entidade empresarial do setor, conseguiu na Justiça a obrigação de circulação de 70%, o que na prática encerraria a greve, já que é este o percentual de circulação média durante o verão. Como resposta e apesar de posicionamento distinto do sindicato, os trabalhadores ampliaram a paralisação para 100%. Depois de dois dias sem transporte público em Porto Alegre, um acordo encaminhou a volta da circulação com 50% na sexta e 100% a partir de sábado.
A cobertura de todos os veículos do Grupo RBS tem se alinhado de forma automática à posição de todos os adversários dos trabalhadores na disputa em torno desse tema: o prefeito José Fortunati, a Justiça e a ATP. Uma coalizão das elites para atacar a legitimidade das reivindicações e das lutas dos rodoviários, que vai da criminalização direta à tentativa de colocar a população contra os grevistas, passando por tentativas de utilização político-partidária-eleitoral da querela.
No jornal Zero Hora (e em seu site), na RBS TV e na Rádio Gaúcha o discurso tem sido afinado. Com maior ou menor ênfase, com mais ou menos agressividade, repórteres, apresentadores e colunistas mostram as dificuldades que a população está enfrentando por conta da paralisação e jogam toda a culpa nos rodoviários. Em alguns casos, chega-se a pedir a prisão das lideranças dos trabalhadores. O último lema gritado por todos os cantos do Grupo, em uníssono com o prefeito José Fortunati, foi a exigência de intervenção da Brigada Militar, estratégia já utilizada em outros momentos na tentativa de pressionar o governador Tarso Genro e colocá-lo em uma situação de incômodo com as classes médias e com a classe trabalhadora. Raros são os trabalhadores entrevistados, enquanto ATP e Prefeitura – em especial Fortunati – não saem dos microfones e das páginas de jornal.
Em sua coluna desta quinta-feira em Zero Hora, o articulista Paulo Santana chamou de criminosos e mentirosos os rodoviários. Nunca fez o mesmo com os empresários ou com o prefeito. Na matéria principal do mesmo jornal, espaço dedicado a contar a história de uma grávida moradora da Lomba do Pinheiro que passou muito tempo esperando ônibus sem sucesso. Como se a longa espera por transporte público não fosse uma mazela de todos os dias, como se o transporte fosse acessível a todos e propiciasse um mínimo de conforto e, em muitos casos, dignidade a quem dele necessita. A moradora da Lomba do Pinheiro, jamais lembrada por Zero Hora, é usada como um objeto modelável e descartável, e o molde da vez é a “prejudicada pelos grevistas maus”.
No programa Polêmica, da Rádio Gaúcha, geralmente bastante afinado com as posições gerais demonstradas pela empresa, há sempre uma pergunta para os ouvintes, muitas vezes construída de forma bastante capciosa. Nesta quinta, a questão foi: “Rodoviários de Porto Alegre contrariam decisão da Justiça e fazem greve geral. Eles tem razão?”. Mesmo com o questionamento direcionado pela ênfase no ponto da contrariedade à decisão da Justiça, e mesmo com o recorte de público de um espaço midiático conservador, o resultado mostrou a maior parte dos votantes apoiando a greve.
O que os veículos do Grupo RBS não mostraram ao longo da semana, porém, foi o fundamental: que as condições de trabalho dos rodoviários são ruins, que o serviço oferecido pelas concessionários é ruim, que a passagem é cara demais e que o lucro dos empresários não para de crescer. O Sul 21, por exemplo, apresentou um quadro que compara os salários dos motoristas com o preço das passagens, e o resultado desmascara uma das teses apresentadas por esse setor midiático durante a semana: a ideia de que o aumento salarial dos rodoviários puxa necessariamente o valor da passagem para cima.
A insistência nessa tese acabava por misturar o imaginário sobre os atuais protestos de rua com o movimento grevista de forma semelhante à estratégia discursiva utilizada em relação às gratuidades: o preço da passagem é caro por culpa dos idosos, dos estudantes e dos trabalhadores, não por culpa dos empresários que lucram demais nem por culpa da Prefeitura que nunca fez licitação para o transporte público. O que o quadro do Sul 21 mostra, ao contrário, é que em 1994 o salário de um motorista podia pagar 1184 passagens, enquanto agora só pode pagar 667 – depois de chegar a 610 em 2012, antes da revogação do aumento das passagens conquistada nas ruas.
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