Há quase um ano… Ação da Via Campesina durante a Jornada Nacional de Luta das Mulheres demonstra a força da mobilização feminina na resistência contra a opressão do Estado. por Jefferson Pinheiro Sentadas na grama, à beira da estrada, em frente ao assentamento Conquista do Chão, em Candiota/RS, no final da tarde de 09 de março, elas bebem cachaça no bico (escondido das crianças), contam histórias, riem. Enquanto o amarelo-luz vai esmaecendo, e um vento quase frio embaralha os cabelos. À noite, se encantam com um céu de lua e estrela. Elas – que conhecem a exclusão, a exploração, a opressão e a repressão, e tomaram consciência de que juntas podem mudar algumas coisas, e de que muitas coisas precisam mudar – têm os olhos no futuro e uma luta no presente. São as mulheres da Via Campesina. São fortes, apaixonantes. Do outro lado da rua de terra fica a Fazenda Ana Paula, propriedade de 18 mil hectares da Votorantim Celulose, 7.500 deles uma imensa lavoura de árvores, que os ambientalistas chamam de deserto verde. Foi ocupada pela manhã, quando cerca de 700 mulheres cortaram centenas de eucaliptos pra denunciar que a monocultura na região resseca os mananciais de água, ameaça a biodiversidade, degrada o meio ambiente, expulsa o trabalhador do campo e gera pobreza. Domingo, dia 08, por volta das 19h, saímos de Porto Alegre debaixo de chuva, um grupo de jornalistas da mídia alternativa, seguindo um carro com integrantes do Movimento. Não sabíamos pra onde. Nessas ações, quanto menos pessoas souberem o destino é melhor, para que a informação não vaze. Joana diz que a ação foi planejada por meses, e um vacilo agora poderia comprometer tudo. Viajamos a noite toda, parando às vezes para que elas monitorassem a estrada, atentas a alguma movimentação da polícia, esperando parte do comboio, que vem de diversas regiões do Estado. É importante que todos os ônibus cheguem ao local de encontro no mesmo horário, porque um veículo parado por horas junto à estrada pode levantar suspeita. Ficamos lá alguns minutos. Minutos longos. A tensão cresce. Dois carros passam, observam. Seguem. Se avisarem a polícia, se algo der errado nesse momento, a mensagem preparada para o amanhecer será frustrada. Ansiedade latente. Atrás de uma curva crescem as luzes. Expectativa. Murmúrios. Silêncio… “São elas!”, alguém grita. São as mulheres da Via Campesina, as companheiras, as lutadoras pelas quais se esperava. Até o local onde a cerca será cortada são mais 40 quilômetros de ruas de areia bem esburacadas. Luiza está a alguns dias na região preparando os detalhes. É ela que ensina os caminhos a tomar no escuro. Antes do dia acordar, param para que as foices e os facões, escondidos na grama, sejam carregados. O rosto junto à janela de vidro, o olhar pra além das cercas desse lugar de conflito e injustiça enxerga tudo o que virá depois. As notícias, os interrogatórios, julgamentos… Conseqüências. Mas há convicção de que é preciso fazer. Enfrentar. O comboio manobra, volta um trecho, acha o ponto. A foice contra o caule é um símbolo, um recado, uma denúncia, um grito. Embaixo dos eucaliptos nada floresce. É tudo seco, árido, estéril. Seriam cortados mesmo pelas máquinas. Na hora do lucro, do muito lucro. Na hora em que as empresas ficam com tudo e a terra fica vazia, usada no limite. E o homem e a mulher já terão ido embora: favela, cidade, desemprego, informalidade, miséria, problema. Por isso elas vibram com cada eucalipto que vem abaixo. Comemoram. Fazem festa. Nas mãos vão ficando os calos. No rosto vai entrando um sorriso. Sorriem com os olhos atrás dos lenços. Era pra terem derrubado mais. Mas ano passado a luta foi dura. A polícia bateu sem piedade. A lembrança incomoda. Por aqui já está bom. Hora da marcha. A área do latifúndio circunda 53 assentamentos, onde 1.800 famílias de agricultores produzem para a subsistência e o mercado local. Além de alterar o bioma do pampa, de prejudicar o meio ambiente, a Votorantim demitiu, em nome da crise financeira, trabalhadores urbanos temporários que não servem mais aos seus negócios. “Como é bom o cheiro de eucalipto cortado ao amanhecer”, diz o câmera extasiado, enquanto colhe as imagens e respira no ar úmido do suor feminino. Elas marcham sobre as pedras do chão, entre o arame farpado e o mar de eucalipto. “É por amor a esta pátria, Brasil, que a gente segue em fileira”, repetem orgulhosas. São de todas as cores, carregam muitas dores, têm todas as idades. Não vão à academia, nem tem a pele protegida por cremes. Não vestem vestidos, nem saltos, não usam batom, não pintam o cabelo e nem por isso são menos lindas, delicadas, sedutoras, femininas. “Não há socialismo sem feminismo”, ensinam. E educam seus filhos pra que entendam essa luta, dentro das lutas. Elas os educam na beira das estradas, sob os barracos de lona, sob o sol e com os pés na terra. Os fazem experimentar a rua, plantar o que será comida, sentir o cheiro da chuva, estudar a vida que levam e a que querem poder levar, viver em comunidade, viver em solidariedade, somar força e dividir conquista. E fazem isso com cuidado, preservando a fantasia e a brincadeira. Porque quem sonha também ensina a sonhar. A polícia chega pelos dois lados de quem marcha, atravessa a fileira dos que caminham. Ostenta o aparato militar. Fazem cara de mau ou transformaram mesmo sua fisionomia? Intimidam. Alguns poucos destoam. A farda não consegue desumanizar a todos. Consegue? Perdi a conta dos quilômetros sob o sol. Foram muitos. Umas ajudam a carregar os filhos das outras, quando os braços já não agüentam esses quilômetros. Paramos duas ou três vezes pra beber e comer pão com banana, dividir os alimentos das mochilas. Se reúnem em grupos, debatem, montam estratégias, tomam decisões. Até chegar a frente de uma das entradas do assentamento Conquista do Chão e da Fazenda Ana Paula. Então descarregar as trouxas, as madeiras e as lonas. Foi rápido a montagem …
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