Editorial

A Catarse faz o Bodoqe. O Bodoqe faz a Catarse.E a Catarse faz o caminho. Com os seus pés, marca sua própria trilha e cria suas raízes na ética e na dignidade de um jornalismo independente.Nossos princípios são nossa carne e nossos ossos. Circulam por nossas veias.A Catarse não tem medo de se mostrar. Com o Bodoqe, quer acertar a mínima imprensa que, a partir de hoje deixará de ser chamada de “grande imprensa”, pois de grande não tem nada. É pequena, é medíocre.O dinheiro não a torna grande. Pode deixar forte, mas não grande.Porque grande e forte são todos que lutam por um jornalismo como ele tem que ser: ético, justo, solidário e digno.A luta é árdua. Mas cada passo nos dá a certeza da escolha certa.O coletivo vai contra a mesmice que não soma, que só subtrai.O coletivo quer mostrar os desvios da informação que a mínima mídia vende em suas prateleiras.O coletivo quer a Catarse.E aí está a Catarse – Coletivo de Comunicação.

Tribunal de Cajamarca, região norte do Peru, 1994. Pesa no ar a insensatez.

André de Oliveira – Você é terrorista? – pergunta o juiz.– Não! Não sou terrorista.– Mas você deve dizer que sim, que é terrorista, para que nesse momento fique em liberdade e possa estar sobre a proteção legal da Lei do Arrependimento!– Mas não pode ser. Como posso dizer que sou terrorista, quando não o sou… Coagida. Amedrontada. Sem conhecer as conseqüências reais da resposta “Sim, sou terrorista”. Pressionada pelo comissário de polícia de Cajabamba, povoado onde vivia, com recomendações de que seria a melhor escolha. Num turbilhão de confussões, Natividad Obeso, peruana refugiada na Argentina há 11 anos, deixa naquele momento uma marca profunda em sua vida: ser perseguida pela Justiça peruana por suspeita de crime que nunca cometeu. Porto Alegre, 2005. Fora do Peru esquecida pelo mundo. Só lhe resta agora denunciar sua condição oprimida e mobilizar solidariedade. Foi o que Natividad fez no painel “Refugiados”, do Fórum Social da Migrações, na tarde do domingo 23 de janeiro. Ergueu o braço no momento reservado à exposição de depoimentos. Denunciou. Porém não recebeu a solidariedade esperada. Sua voz era a súplica da ajuda. A resposta veio, lamentavelmente, pela perplexidade dos participantes. E a reação dela, o nó da angústia. O silêncio refugiado de milhares de peruanas acusadas de terrorismo durante a ditadura militar de Alberto Fujimori permanece esquecido. Não há qualquer movimento organizado no Peru que logre reivindicar o fim de acusações mentirosas e defenda seus direitos fundamentais. Natividad e outras tantas peruanas estão lançadas ao destino trágico do abandono. Peregrinam em busca dum espaço humano de acolhida para resolver tantas injustiças. Peregrinam em busca da verdade. Estas mulheres fazem parte do imenso contingente de pessoas obrigadas a abandonar o que as identifica e sustenta. Difícil de contar, mas o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ANCUR) estima em 17 milhões, só os que vivem em acampamentos. Outros números apontam 175 milhões de pessoas buscando sobreviver fora de seu país por conflitos variados. São muitos. E são sós. O sentimento de solidão e afastamento domina a história de um refugiado. A intolerância reprime, distancia e isola. Cada caso tem seu sintoma degradante específico. O de Natividad é só um deles. À sombra do Sendero LuminosoO início da tormenta de Natividad está na bem sucedida aposta no negócio de revenda de cervejas nos povoados vizinhos à Cajabamba. O aumento dos lucros fez dela alvo fácil no regime de extorsão praticado pelo movimento armado peruano, que age com desenvoltura por esta região. Natividad sempre pagou regularmente o suborno exigido por medo. Mas o que incomodava os que a extorquiam era sua inserção comunitária durante a campanha para eleições municipais daquele ano. É que melhorar as condições de vida, para quem não necessita, só atrapalha é o que entendem os chefes do Sendero. Numa noite, senderistas a capturaram e a levaram numa celebração em homenagem à Mão Tse-Tung. Na verdade se tratava de um julgamento popular. No banco dos réus, Natividad, sem entender nada do que se passava. A única lembrança é de que foi absolvida por seus conterrâneos e ordenada a desaparecer da festa imediatamente. Natividad procurou a polícia para formalizar denúncia de seqüestro. O mesmo delegado, que meses depois aconselharia ela a assinar a confissão de terrorista, foi quem não aceitou sua queixa, sem explicar qualquer motivo. Meses depois, chega à Cajabamba uma ordem de captura contra Natividad pela acusação de colaboração estratégica com o movimento Sendero Luminoso. O indiciamento partira de Leodan Alfonso Alcalde, condenado como terrorista arrependido e transformado em fonte de denúncia pelo órgãos de segurança pública. Detalhe: Natividad, até hoje, não tem a mínima noção de quem seja o sujeito. Antes da chegada dos policiais, Natividad, mãe de quatro filhos, foge para um povoado distante, aluga uma casa, coloca sua mãe como guradião da família, foge para a Argentina, passa a sofrer discriminação étnica e social por ser imigrante e fica os próximos sete anos como fugitiva ilegal. Só em novembro de 2001 a Justiça Argentina emite sentença reconhecendo sua situação de refugiada. Desde então passou a integrar a luta organizada dos militantes na Argentina. É presidente do grupo Mujeres Peruanas Unidas Migrantes y Refugiadas. Seu desejo é voltar para seu país. A ordem de captura desencoraja a tentativa de encarar os tribunais. O crime de terrorismo não tem prescrição no Peru.Lhe restam quatro alternativas. Enfretar diretamente o processo judicial, o que significa sua imediata prisão. Apresentar uma defesa de inocência desde a Argentina, com uma chance muito reduzida de ser aceita, pois como poderá abrir um processo em que não haverá interrogatório. Levar o caso até a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ou permanecer em Buenos Aires, determinada a esperar a dia em que a insensatez que pesa no ar abra um brecha a uma ajuda que chegaria na rua Jufre, sala 2, sede de sua organização. Natividad tem fé. É uma lutadora refugiada. Trabalhadora oprimida.

Uma criança morre a cada cinco segundos no mundo…

Fabiana Mendonça E a família senta a mesa para o abençoado almoço, aos berros com os seus e em silêncio servil frente à televisão.E a filha reclama com os pais pelo imperdoável ato de não poder consumir um produto qualquer novo, cheiroso, dentre tantos que a sociedade apresenta.E o marido que briga com a mulher por ela ter se tornado parte da mobília e ela exige em troca que ele ainda seja a ilusão de um tal príncipe encantado tão vendido em histórias capitalistas-infantis.E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo…E os governos e suas amigas empresas buscam mais controles e maior poder em outros territórios além-mar. E políticos “representantes” do povo, que em seus currículos jamais consultaram o interesse popular, criam leis e governam para si, para os amigos, parceiros e financiadores.E o mundo é regido pelo poder financeiro, onde vidas são traduzidas em números, sentimentos são manipulados pela publicidade e tudo recebe um código de barras com seu valor pré-estabelecido. O dinheiro é sua religião dominante.E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo…E numa mesa de bar um grupo de amigos bebe há várias horas e nem sequer se cogita em falar em crianças, muito menos naquelas que desfalecem em algum lugar do mundo.E nos corredores do alto poder, crianças não entram, pois o lugar está abarrotado de quem dá mais, de ternos, gravatas e tailleurzinhos comprando ou vendendo a vida de mais uma dessas inocentes criaturas prematuramente arrancadas do mundo.E ninguém fala sobre isso, não nasce um mísero rubor de vergonha na cara de nenhum santo cristão, ateu, ou seja lá que deus escolheu para seguir.E não salta uma indignação sequer em algum peito que ainda tenha algum órgão a pulsar.E uma criança morre a cada cinco segundos no mundo…E não acorda memória nenhuma que lembre o que é ser criança. E essas que estamos fingindo desconhecê-las, no curso normal da vida têm seus corpos desprendidos das almas cedo demais.E UMA CRIANÇA MORRE A CADA CINCO SEGUNDOS NO MUNDO!E O QUE TU FAZ A CADA CINCO SEGUN-DOS DA TUA VIDA? E algum título descreve essa situação? Vem cá, por que tu me olha assim? Vejo medo em teus olhos e repulsa em tua expressão. Por que muda de caminho para não cruzar comigo? Tu desvia o olhar e finge que não me vê. Por que amaldiçoa minha existência? Em rodas de amigos finge compaixão e sozinho em teu egoísmo sente-se aliviado pelo assassinato de mais um dos meus?Ei, olhe para mim. Mire bem meu rosto e seja franco contigo. Acredita que sou assim porque quero? Olhe para meus pés. Uso chinelos. Acha que não sinto frio no inverno? Acha que estou precariamente vestido porque quero? Crê que peço comida por gula? Que cheiro cola para tornar mais divertida a vida? A cola é o meu cobertor, o meu agasalho nas noites frias de um inverno sem piedade. Te incomodo porque urino em tuas calçadas e defeco em tuas praças? Meus filhos ranhentos não são dignos de brincar com os teus? Acaso os sonhos infantis não são os mesmos, recheados de super-heróis, grandes partidas de futebol, uma casa arrumadinha num futuro colo-rido? Todos fazem parte da mesma geração que nos sucederá. E onde está a diferença?E tu, o que faz por mim? Crê que não tem responsabilidade sobre como vivo? Olhe para longe do teu umbigo. Também tenho umbigo. E tenho outras marcas de violência, outros buracos de bala, outras tentativas de me expulsarem deste mundo. E este mundo também não é meu? Também não mereço casa? Por que não me dá emprego? E por que não me educa?Não me censure por ser a conseqüência da tua falta de ação. A cidade também é minha. As ruas também são minhas. Mas antes eu as tivesse como trilhas para bem viver. Antes eu as não usasse para dormir.Sim, sou morador de rua.

Entrevista com Santiago

Neltair Rebés Abreu, conhecido como Santiago, é um cartunista de dar orgulho para qualquer gaúcho. É um dos melhores do mundo. Só isso já serve para explicarmos o porquê dele ser o nosso primeiro entrevistado. Mas, além disso, o Santiago é uma figuraça, um cara simples como o traço dele e sempre bem humorado. E a imprensa do Rio Grande do Sul, com exceção do Jornal do Comércio que contratou o cara, é de uma mediocridade e de uma ignorância atroz por boicotarem ele e os demais cartunistas talentosos que o nosso estado tem. Mas o seu Neltair é muito maior que qualquer jornalzinho metido a besta. E o Bodoqe oferece sempre as páginas para o seu talento, o que para nós é uma honra.Participaram da entrevista a Fabiana, o Rafael, o André e o Pedro Metz. Ela foi realizada há algum tempo e aqui transcrevemos alguns dos melhores trechos. Bom proveito! O INÍCIOEu desenhava desde menino. Quando vim para Porto Alegre, eu estava entre fazer o curso de jornalismo e o de arquitetura. Nesse tempo, comecei a fazer jornais estudantis e senti que havia um certo mercado para o humor, mas eu achava que não sabia fazer humor, só histórias em quadrinhos, com situações realistas. Depois descobri que eu tinha aquilo que chamam de verve, aquela coisa de tu criar situações engraçadas, pessoas que têm senso de humor. Aí não parei mais. Nesse tempo, comecei a publicar num espaço chamado Quadrão, uma página que o jornal Folha da Manhã, na década de 70, mantinha para iniciantes. Aquilo me deu um estímulo. Depois de um tempo fui contratado pela Folha da Tarde para fazer algumas ilustrações. E comecei a ganhar alguma coisa por aí. Botei a cara nisso e tornei minha profissão. Desisti do curso de arquitetura. TINTINEu sempre lia humor, gostava. Minhas influências na infância é Disney. Na adolescência eu comecei a ler Tintin, depois, aqueles humoristas da Revista Cruzeiro. Já na minha juventude apareceu o Pasquim, eu já conhecia o trabalho do Ziraldo, do Jaguar e tal. O meu desenho acho que é filhote do Hergê, do Tintin. Quando eu comecei a exercitar o humor, a minha linha era a clara, como se diz, o traço limpo, que é a escola dos belgas, do Tintin. Eu tive uma fase incrível que eu copiava o Ziraldo. Eu tinha cerca de 20 anos nessa época. Depois, consegui me livrar do Ziraldo, tanto que eu parti para um desenho bem diferente do dele. PASQUIMQuando eu iniciei na Folha da Tarde, comecei a me sentir mais seguro e arrisquei mandar algumas coisas para o Pasquim. O pessoal gostou e publicou. Fiquei entusiasmado e comecei a mandar com freqüência. Tive uma participação boa no Pasquim, lá por 77, 78 até a data de fechar. Fui colaborador habitual. Tinha desenhos que quando a Folha da Tarde não queria publicar, eu mandava para o Pasquim e saía e era um sucesso. Quando um desenho era negado pela chefia de um grande jornal naquela época, queria dizer que era um desenho bom, contundente, era crítico. COOJORNALEu era só ilustrador e às vezes fazia uma charge para o jornal. Eu ilustrava uma crônica do Luís Fernando Veríssimo. Quando surgiu a cooperativa eu me associei. O Coojornal foi uma reação imediata ao fechamento da Folha da Manhã, que foi um jornal muito livre, que marcou época por ser combativo. E com um padrão de jornalismo que nunca mais voltou a ter aqui no sul. E como era um jornal nessa linha, ele foi pressionado até que em 1975 todo mundo pediu demissão. E esse pessoal, que era uma nata do jornalismo jovem, com muita garra, com vontade de desafiar a ditadura ficou inconformado. Como já havia um embrião de uma cooperativa, esse pessoal se reforçou em torno dela. REVISTA BUNDASAcho que o Ziraldo centralizou muito na pessoa dele, que é um senhor com mais de 70 anos. Ficou uma visão de pessoas mais velhas. Acho que ela tinha que ter um caráter mais renovado, eu não sei bem o que é… Algumas sessões feitas por cabeças mais jovens. Além disso, acho que ela foi atropelada também pela questão econômica. Tenho certeza que foi um boicote econômico das agências de propaganda. Os publicitários sempre gostam de se auto-elogiar, se dizem ousados… Aí quando surge uma revista Bundas, eles não botam anúncio porque dizem que é imoral, que é um palavrão… Onde está a ousadia desses caras então? Usaram a desculpa de que Bundas era um nome muito forte e o anunciante não queria se vincular a isso. Mas como é que os caras fazem anúncios com bebidas que tem muito mais que bundas, mais que sexo? A própria publicidade, às vezes, cai num mal gosto, com apelo sexual e tudo mais. ESTADÃOA experiência com o Estadão foi a mais terrível que eu já tive na minha vida. Fiquei nove meses mandando desenho daqui de Porto Alegre. Tinha que fazer três, quatro desenhos, pois os caras viam fantasmas em tudo que é coisa. Era cada análise mais maluca… Desenho que tinha um carinha de pé torto não podia porque a “sociedade dos pés tortos” iria reclamar… Então como fazer humor? O humor é extremamente livre, solto e irreverente. Humor é subversão, ele subverte as coisas. Fazer uma coisa comportadinha é o caminho para não ter graça nenhuma. BOICOTETodo o Brasil elogia a qualidade dos cartunistas daqui. Tem o Moa, o Bier, o Edgar Vasques, o Juska, que são excelentes desenhistas. Como é que esses caras não estão nos jornais? Ninguém contrata esse pessoal. Por que? É por ignorância? Eles não sabem que tem essa mão-de-obra, que é barata e boa? Ou é muita ignorância ou é uma marcação em cima. Eu quero crer que os caras têm medo do humor por ele ser bem popular. Eles não conseguiram inventar ainda uma figura que tem de sobra na área do texto que são os “colunistas amestrados”. Não conseguiram inventar ainda o “cartunista amestrado”. Se bem que tem um que é …

Aço e Carne

Adel Braga Mesmo depois de ter feito aquilo dezenas de vezes, o carrasco ainda sentia-se desconfortável e triste. Sendo incapaz de eliminar seus sentimentos, ele teve que aprender a controlá-los. Para isso, ele dizia a si mesmo que não era ele quem matava. Considerava-se tão inocente quanto a lâmina – um feito de aço, o outro de carne, mas essencialmente iguais. O carrasco não mata, a lâmina não mata. Pensar que ela era sua cúmplice na inocência ajudava a tornar o trabalho mais simples, diminuindo seu desconforto.Às vezes sentia que não era um bom profissional. Achava que não devia sentir nada pelos homens e mulheres que executava. Mas com o tempo acostumou-se consigo mesmo e descobriu que podia fazer seu trabalho com grande eficiência.Aquele dia tudo aconteceu como sempre. As horas passaram em seu ritmo normal. Os sentimentos vieram de sua maneira costumeira, intensificando a medida em que a hora aproximava-se – não vieram nem mais nem menos intensos. Quando achou que era o momento, o carrasco soltou a corda que prendia a lâmina que, com a velocidade e frieza da luz do relâmpago, separou sua cabeça encapuzada de seu, agora inerte, corpo.