Por Eliana Mara Chiossi.
“Ler, segundo Freire, não é caminhar sobre as letras, mas interpretar o mundo e poder lançar sua palavra sobre ele, interferir no mundo pela ação. Ler é tomar consciência. A leitura é, antes de tudo, uma interpretação do mundo em que se vive. Mas não só ler. É também representá-lo pela linguagem escrita. Falar sobre ele, interpretá-lo, escrevê-lo. Ler e escrever, dentro desta perspectiva, é também libertar-se. Leitura e escrita como prática de liberdade. A escrita é também objeto do pensamento e da vida. O mundo ao sul da linha do Equador é marcado pela oralidade; aqui, a escrita e a leitura são um distintivo de poder. Portanto, a criação de uma política de desenvolvimento de participação do mundo da leitura e da escrita significa redimir as massas excluídas de 500 anos de história. A leitura do mundo antecede a leitura das letras. A leitura assim é um fato político cultural de participação.” – parafrase de texto de Paulo Freire (link original aqui).
Estou no Rio de Janeiro e li, na segunda-feira, duas colunas no Segundo Caderno de O Globo. Como acontece muitas vezes, dentro da mesma edição de um jornal há autores que questionam outros, sem que isso esteja planejado. Neste caso, penso que nem Daniel Galera, autor do texto O Reader e a direção oposta, nem Joaquim Ferreira dos Santos, autor do texto A redação do Enem, sabem que estão em ferrenha oposição.
Daniel Galera declara seu abalo diante da notícia de que a partir de 1º de julho o Google Reader será interrompido, pois era seu “verdadeiro mapa de leituras on-line” o que não acontecia com o Twitter ou Facebook. O Reader era a rede social perfeita para os navegadores e leitores hardcore, despida de perfis edulcorados, cutucadas, álbuns de fotos e convites de festas, focada somente no que interessava: ler, anotar, debater, descobrir coisas novas(…), a ferramenta mais simples e eficiente que se tinha à disposição para o acompanhamento e a organização da leitura no meio da gritaria”.
Joaquim Ferreira dos Santos faz uma radiografia necessária sobre os resultados das redações do Enem, incluindo a polêmica correção que deu notas altas para textos ruins. Só que ele toca na ferida do país como diz num trecho: “Sem querer, os estudantes fizeram a melhor crítica literária do país com sua maneira de ler, escrever e reconhecer mérito”. Ele se coloca ao lado dos estudantes e apresenta o resultado do Enem como nossa responsabilidade. Daniel Galera se esconde no seu canto tranquilo e sofisticado, sem a cacofonia e as bobagens do Facebook.
Ontem, ao comentar que iria falar desses textos nesta coluna, uma amiga me deu uma frase para citar: “Se o seu Facebook está desinteressante, olha melhor a sua lista de amigos”. Fiquei repleta de reflexões e inquietações com esses dois textos, sabia que escreveria sobre esses dois textos, não para concordar ou discordar exatamente, mas para me posicionar na relação entre leitura e literatura, que é urgente pensar. Não consigo mais, apesar de ser originalmente professora doutora de Literatura Brasileira, pensar em dar aulas de Literatura. Só consigo me ver dando aulas (e dar aulas não seria a descrição correta do que quero fazer) de leitura. Porque a leitura prescinde o contato com a literatura na forma tradicional de pensar literatura. E literatura, para mim, tem que levar em conta todo tipo de escrita que se quer artística, toda escrita que deseja levar o leitor a algum tipo de fruição. Não é aquilo que vende mais nas livrarias, nem aquilo que vale mais diante da crítica literária.
Eu uso o Facebook. Tive pouco tempo de usar o Reader porque não conseguia na época manter uma disciplina de compartilhar minhas leituras e acompanhar as leituras de outras pessoas, pois estava muito ocupada tentando o impossível: dando aulas de literatura. Não acredito que exista a profissão “professor de literatura”. Quem pode, afinal, ser professor de algo tão subjetivo e pessoal que começa e termina com a decisão de ser leitor?
No Facebook, vejo pessoas que têm perfis edulcorados, que mandam mensagens tolas, que compartilham textos simplórios, que postam fotos de família, e respeito isso. Porque seria uma idiotice julgar o suporte pelo que os usuários fazem dele. Algo como matar o mensageiro. Não sou nem contra nem a favor do Facebook. Mas vejo que até as redes sociais são hierárquicas e preconceituosas. No Reader estão os leitores sofisticados, que têm tempo de sobra para a leitura de qualidade de livros de qualidade (esta qualidade é um critério a ser questionado, claro). No Facebook estariam aqueles que fazem barulho e gritaria, ou melhor dizendo, que estariam no nível da oralidade. Quem sabe os alfabetizados funcionais. Estes que escrevem redações paupérrimas no Enem mesmo depois de terem sido oficialmente formados nas escolas.
Certa vez, em sala de aula, na disciplina “Oficina de Leitura e Produção de Textos”, pedi aos meus alunos para compartilharem conversas que estavam em seus celulares. Foi uma farra! Em poucos minutos perceberam que estavam escrevendo diálogos interessantes. Cada um partilhava uma conversa, e a turma toda comentava. Temas variados como: dívida para ser paga, pedido para os pais, discussão sobre a relação amorosa, briga entre amigos, traição, morte, ciúmes. Ora, me parece que todos os usuários de celulares estão exercitando, mesmo que cometam erros ortográficos e deslizes gramaticais, micronarrativas que, se bem selecionadas, poderiam ser publicadas e teriam leitores interessados. Me parece que o Facebook mobiliza muito mais do que troca, de maneira simplória, mensagens. Antes, permite o exercício de cada um compor sua biografia como bem entende, paripassu com os acontecimentos pessoais e sociais. Uma pessoa ora fala o que está pensando, ora posta uma foto familiar, ora discute temas como a chegada do novo papa e a morte de um presidente. Por que essa gritaria tem menos valor que o silencioso espaço do Reader?
Porque o Brasil anda de costas para sua história sempre. E nós, os que tiveram direito à formação “sofisticada”, estamos ainda em débito com quem tem fome de leitura. Eu e Jefferson Pinheiro estamos pensando em trazer para Porto Alegre uma forma de saraus que dialogue com os saraus feitos pela Cooperifa (aqui). Eu faço parte de um grupo que está no Facebook lutando para criar produtos que divulguem formas libertárias e alternativas de educação. E isto tudo vai incidir diretamente na nossa forma de ver a questão da leitura, primeira porta de acesso ao mundo hierárquico da letra.
Prefiro o Facebook ao Reader. Agora, não por falta de tempo, mas porque entendi que posso continuar sendo a mesma pessoa que sou, mas também partilhando minhas narrativas e poemas, partilhando meus pensamentos, quando quero, partilhando meus sentimentos, quando quero, mostrando fotos, quando quero. Mas continuo lá porque esta rede social me permite ver um grupo de pessoas que deseja mudanças e um grupo de pessoas que pode ser afetado por esta mudança nas formas de ter acesso a leituras. Que seja pela leitura de uma charge inteligente, que seja pela leitura de uma receita de bolo, que seja pela leitura de uma notícia sobre a morte de 241 pessoas. Eu quero fazer do meu Facebook um lugar para ser lida e ler aquilo que as pessoas menos sofisticadas nos seus textos têm a dizer. Porque assim fico a favor de uma rede social que, acima de tudo, é popular. Pensando no Facebook como espaço de empoderamento, lugar onde podemos sim mobilizar as pessoas para fazer da leitura uma forma de ganhar direito a cidadania e expressão. Quero estar ao lado das pessoas comuns. Quero ter uma atitude política que entenda o acesso à letra como o acesso à cidadania. Depois de gostar de ler, depois de gostar de escrever (mesmo que sejam estas “bobagens” que alguns sofisticados desprezam), é possível caminhar para uma leitura do mundo, mundo pensado como um lugar melhor de se viver, se não houver necessidade de clubes fechados de leitura.
*Foto da capa: IND DOURADOS, 01/06/2006, Aldeia do Passo Piraju da Tribo Caiowa-Guarani, em Dourados, Mato Grosso do Sul, FOTO PAULO PINTO/AE (https://educarencantando.blogspot.com.br/2012/02/contribuicoes-da-educacao-indigena-para.html)
Baaaaaaaita!!!
“Falam assim: “Lugar de índio é na floresta.” Eu adoraria estar na floresta, mas o que estão fazendo nas nossas florestas? Onde tem lugar para o índio viver, na nossa floresta? Se ele fica só na floresta, onde que a decisão de derrubar essa mata, de envenenar esses rios, de matar essas populações são tomadas? São tomadas aqui, nas capitais. Então o índio tem que estar aqui. Lugar de índio é em todo lugar, não é só na floresta não! E é por isso que a gente luta tanto por aquele espaço. Porque aquele espaço não é para nós nos fecharmos em nós mesmos não. Aquilo é para ser uma embaixada indígena. Aquilo é para nós estarmos em diálogo com todos vocês. A gente acredita que a gente tem o que contribuir para esse país. Nós não precisamos ser cuidados, como aqueles que não sabem o que fazem das suas vidas, dentro de uma cultura que não pode evoluir. Nós temos o direito de aprender a usar computador, nós temos direito de usar roupa, sapato. Temos sim! Assim como o brasileiro vai comer no self-service e usa o mouse e nem por isso ele vira inglês ou americano, ele é brasileiro. Eu estou usando isso aqui, desde ontem, porque as minhas coisas estão guardadas em um depósito, que eu nem sei onde estão, depois que foram tiradas da aldeia. Pois é. Eu estou vestindo isso aqui, mas isso não me faz menos indígena. […] Está passando um abaixo assinado aí em folhas de caderno, que o meu companheiro Ash Ashaninka passou. E eu estou trazendo isso, que é da vestimenta dele, para representar o povo dele. O meu cocar, eu tenho o meu cocar em casa, mas estou usando o cocar do meu irmão Baré. […] Nós temos os Guajajaras ali no fundo. Nós temos aqui indígenas potiguaras que estão descobrindo as suas raízes. Nós temos aqui uma pessoa que é mãe de uma indígena kuikuro. E aí é o seguinte: nós indígenas também estamos aprendendo com a Aldeia Maracana, o primeiro espaço em que, além de conviver com vocês, nós também estamos convivendo entre nós, etnias indígenas. Então é por isso que nós queremos aquilo. […] Por isso que eu estou correndo o risco de ser chamado de oportunista. Talvez seja oportunismo, mas é que essa oportunidade aparece uma em não sei quanto tempo! E é por isso que eu estou aproveitando. Não é por mim não. É pelas 305 etnias indígenas desse país que eu estou fazendo isso. […] Que Deus, independente do nome que ele tenha, ilumine os caminhos dos nossos irmãos. Boa noite a todos.”
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=2hvX6cvJT-g#!