Amar nosso corpo, dizer sim para nossa alma

Por Eliana Mara Chiossi.

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Era difícil dizer com exatidão quando o inverno chegou. O declínio foi gradual, como o de uma pessoa que alcança a velhice, imperceptível no dia a dia, até que a estação se tornou uma realidade certa e inexorável. Primeiro veio uma queda na temperatura noturna, seguida de dias de chuva constante, surpreendentes rajadas de vento do Atlântico, umidade, a queda das folhas e a mudança do horário – embora persistissem momentos eventuais de alívio, manhãs nas quais era possível sair de casa sem um casaco e o céu se mostrava límpido e claro. Mas eram como sinais enganosos de recuperação num paciente cuja morte fora decretada.
A arte de viajar, de Alain de Botton

Em primeiro lugar, preciso pedir perdão pela ausência. Uma vez pedi perdão a alguém por algo aparentemente simples, e a pessoa achou exagerado. Não acho. Pedir desculpas é coisa burocratizada. Peço perdão porque levo neste pedido meu desejo intenso de compreensão e compaixão. Compaixão como tolerância ao meu modo de ser um tanto à deriva. E ainda assim poder dizer que sou uma pessoa razoável como ser humano. Se bem que não acredito muito no par humano + razoável

Deixei de entregar minha crônica semanal por algumas semanas. Gustavo Türck, como editor, foi paciente e tolerante, mas isso é coisa que não se pode fazer, e publicamente assumo que será a última vez. Terei de usar a arma que quase todos os cronistas usam: ter sempre uma crônica guardada como carta na manga em caso de pane ou pânico. Devo dizer também que é sempre frustrante não entregar um texto que é esperado. O que mais pode querer uma escritora que ter seus textos aguardados para leitura e fruição? Agradeço ao meu editor, pessoa em que confio, pessoa que admiro. E agradeço por poder fazer parte do Coletivo Catarse.

Escrevo esta crônica num café, com janelas para a rua ensolarada, depois de quase sete dias de reclusão. Ouço Billie Holiday para não ter de ouvir alguma música ambiente que me desagrade ou conversa idem. O tema é romântico. O verso chave diz: Se você fosse minha… E poderia ser também traduzido por: Se você fosse meu. Seguido daquelas promessas irrealizáveis dos apaixonados. Tem uma imagem bonita que lembra uma música de roda, da minha infância, algo como: “Se esta rua fosse minha, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de brilhante, só para meu amor passar”. Como imaginar que hoje uma pessoa tenha este zelo, este esmero com a pessoa amada? Outros momentos ou fim do túnel da idealização do amor romântico? Conjecturas e gripe: péssima combinação…

Passagem. Isto seria o tema da crônica de hoje? Tudo que passa, até a gripe que me derrubou por tantos dias. Os dias de cor cinza passaram, deram um intervalo, e hoje a luz está convidativa a escrever uma crônica visual. Quer dizer, a luz está convidando para passeios, encontro com amigos, largar o trabalho e ir tomar um mate no parque, lendo um livro, conversando, ouvindo música ou fazendo silêncio.

Já quase morri algumas vezes na vida. Numa delas, quase morri mesmo. Tive duas convulsões em curto espaço de tempo, perdi a memória por algum tempo, perdi alguns dentes, perdi a noção, experimentei a sensação incômoda e fria de estar numa UTI e depois sobrevivi. Três anos depois, me queimei gravemente. Processo doloroso, durante e depois. E hoje guardo cicatrizes que não ficam visíveis quando estou vestida. A gripe, que durou quase exatos sete dias cabalísticos, me deu algum receio, quase medo mesmo, em alguns momentos, de por acaso morrer sozinha no apartamento. O medo é, em parte, fantasioso e ilógico. Tenho amigos, poderia tê-los acionado. Mas guardei o medo comigo, e ele se sentiu bem instalado no meu apartamento.

O livro “A doença como linguagem da alma”, de Rudiger Dahlke, sempre me serve de consulta em certos momentos de fragilidade do corpo. Me ajudou a entender as convulsões. Me ajudou a aceitar a queimadura, dias antes de mandar para a editora a versão final do meu primeiro livro. O livro pode ser brevemente descrito nestas palavras: Dizemos que a saúde é o nosso bem mais precioso. Então, qual o sentido da doença na nossa vida? Neste livro, é apresentado um caminho para detectar o significado mais profundo das doenças com base na ideia de que todo sintoma é um alerta da alma para uma carência essencial. A compreensão dos diversos sintomas clínicos abre para cada um de nós um caminho novo que nos leva de uma forma mais rápida à conquista do autoconhecimento. Claro que não é a única abordagem de entender as doenças, mas me abriu um caminho para pensar que adoecer pode ser evitado ou amenizado com boas doses de coragem para se conhecer melhor. É preciso bravura para enfrentar esta jornada de se olhar no espelho, sem véus e sem maquiagem. E é incrível como somos capazes de esquecer nossos aprendizados. Coisa parecida como ter uma excelente caixa de ferramentas e se esquecer dela na hora simples de colocar um prego na parede.

Tenho pensado, ainda de forma muito vagarosa, que esta gripe quer me dizer algo sobre vínculos e compromisso com a vida. Não vou cair na armadilha de traçar uma linha direta entre a gripe e as questões psíquicas e subjetivas. Estou apenas interpretando a “minha” gripe nesta armadilha. Não é extensivo aos demais. A tosse pode ser interpretada como uma raiva que não sai da garganta. Minha gripe começou por aí. E, dias antes, rompi os laços de amizade com alguém muito estimado. Analisando com certa frieza os fatos, deixei muita raiva acumulada. Deixei de dizer muita coisa que eu precisava dizer. Como ela poderia saber que me magoava ao desprezar meus sentimentos? Como ela poderia adivinhar que era egoísta na maior parte do tempo, interessada sempre nos seus próprios dramas? Como dizer diretamente que por vezes fui deixada de lado quando havia outras amigas novas, “mais interessantes” na roda? A responsabilidade foi minha por não ter sido capaz de mostrar meus limites. Estava fazendo o papel de boazinha? Sim, fazendo o papel daquela que aceita tudo, que nunca diz não. Cínica, mas de boa vontade… Cito aqui um trecho de artigo simplificado sobre doença e linguagem do corpo:

As pessoas que ficam resfriadas ou gripadas com facilidade mostram sua revolta contra pensamentos contrários aos delas. Também mostram que muita coisa está acontecendo ao mesmo tempo em seu ambiente, fazendo c om que não tenham tempo para si mesmas. Quando você se atola de compromissos que inibem seu jeito real de viver e deixa de lado o seu lazer para “trabalhar por necessidade”, você acaba desorganizando inconscientemente na sua cabeça simbolicamente, significando congestionamento de ocupações. Isto pode fazer com que você fique doente para obrigá- la a parar um pouco e voltar a se ocupar consigo mesma. Esse, na verdade, é um desejo consciente, mas que, devido à situação, não pode ser revelado. Então, sua mente “providencia” um mal-estar para que você tenha uma desculpa e possa fugir daquele “inferno”, sem carregar culpa.

O processo de somatização e a compreensão da saúde são muito mais complexos do que admitimos. Mas não pude deixar de me ver traduzida nestas palavras. O clima, o contágio pelo contato com pessoas gripadas, as condições gerais da saúde, tudo isso se junta para explicar uma gripe. Mas a minha gripe tem nomes e endereços. Ou talvez, tenha um nome e um único endereço: meu nome e meu corpo, que é onde moram minhas concepções de vida. Enquanto eu continuar agindo da mesma forma provavelmente serei vítima de outras gripes como essa que me derrubou por dias. E ainda não foi embora.

Cada um de nós pode sempre pensar que tipo de doenças traz para sua própria vida. Isso está dito na maioria dos livros baratos de autoajuda. Mas a minha gripe tem uma história de vínculos desfeitos e de recusas adiadas. Minha gripe simboliza minha dificuldade em parar e olhar melhor ao redor. Minha gripe aviva minha memória para minha necessidade de ser, cada vez mais, pausa e silêncios. Sem isto, não vou poder tocar a música que quero ser na minha vida. Porque não existe música sem silêncio. E não existe possibilidade de estarmos vivos sem aprender a deixar partir o que já não nos serve.

A saudade, como diz o poeta, é uma estrada longa. Como esta crônica, que ficou um pouco longa demais… Mas eu preciso perder o medo de ter saudade. Eu preciso esvaziar diariamente a bagagem. Para poder seguir em frente, como alguém que, ao invés de marchar atrás de um exército de iguais, dança com a vida todas as suas singularidades e variações. Viajar para dentro de mim mesma pode ser um bom remédio para começar. Para a gripe, já tenho um arsenal de comprimidos, xaropes e outras coisitas mais.

PS: Soube agora que Amora e Goiaba, um casal de cachorrinhos lindos que viviam na vila de São Jorge, GO, morreram. Eu os conheci ano passado, quando fui visitar meu filho que vive também lá. E eles sempre andavam atrás de Lucas para dar e receber carinho. Lucas me conta isso sem dor, porque crê (ainda bem) que tudo é o processo da vida. E minha família enfrenta o limite da vida da nossa cachorra Lira, que tem 14 anos e terá de ser operada esta semana. E fiquei pensando nisso porque tinha pedido a Lucas uma foto deles para guardar de lembrança. Agora guardo na memória as imagens que fiz, no coração, na fogueira viva das coisas boas que vemos e sentimos e vão conosco para onde formos, em qualquer plano que haja para viver e morrer. Gripe não mata, em geral, se bem cuidada. O que mata é viver. E viver mal mata mais ainda.

Foto de Eliana Mara Chiossi, em Triunfo, no mês da gravação do DVD Alabê Oni, 2013, utilizando filtros e recursos do editor do Picasa a partir da foto original.

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