Passando pela rua, comprei acessórios para enfrentar o frio. Penso que nunca tenho o suficiente, sempre me lembro de algo que pode melhorar meu modo de me agasalhar e talvez o erro seja na falta de aprendizagem sobre como viver no frio e enfrentá-lo. Tenho mais roupas que muita gente, claro. As campanhas de doação de agasalhos são tratadas como forma de mera caridade que afeta pouco a questão da desigualdade social. Uns têm mais agasalhos do que outros, extensivamente como uns têm mais bens do que outros, mais salários, mais condições de saúde e educação. Conheço muitos amigos ideologicamente incríveis que não dão a mínima para a campanha do agasalho porque classificam como ato de assistencialismo, que mais alivia a culpa de quem não está disposto a agir de forma mais direta para intervir na realidade, a fim de modificá-la.
Na escola, no que era chamado de “primário”, o período que ia da primeira à quarta série, eu gostava muito de cantar. Participava do coral. Era um grupo de vozes bem ensaiadas por uma professora jovem, bonita e extremamente carinhosa com todos nós. Sempre que havia um evento ou celebração, éramos convidados para cantar. Uma das músicas das que me lembro até hoje me doía tanto que eu chorava no meio. Por incrível que pareça, encontrei a versão meio dramática demais desta música com um padre cantando. Acho melhor a versão dos meus tempos de menina, ouvindo as vozes dos amigos. Mas me faz chorar até hoje (sigam o link para conhecer a melodia: https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=c-c8aNapx70).
Balada da Caridade
Para mim a chuva no telhado
É cantiga de ninar
Mas o pobre meu Irmão
Para ele a chuva fria
Vai entrando em seu barraco
E faz lama pelo chão
Como posso
Ter sono sossegado
Se no dia que passou
Os meus braços eu cruzei?
Como posso ser feliz
Se ao pobre meu Irmão
Eu fechei meu coração
Meu amor eu recusei? (bis)
Para mim o vento que assovia
É noturna melodia
Mas o pobre meu irmão
Ouve o vento angustiado
Pois o vento, esse malvado
Lhe desmancha o barracão
O que percebi mais tarde é que eu era muito pobre. As coisas em casa andavam mal. Tanto que poucos anos depois, aos 13, tive que começar a trabalhar e estudar no período noturno. Mas eu tinha um teto, havia comida em casa (a época de escassez da primeira infância tinha ficado para trás). Então, algo ali naquela música me feria. Havia pena, havia afinidade, havia um desejo genuíno de que tudo fosse dividido. Nunca acreditei em propriedade privada e fui castigada muitas vezes porque pegava dinheiro dos meus pais para pagar doces para os amigos. Não estou dizendo que era e sou boa, especial, caridosa ou coisa parecida. Estou dizendo que a injustiça e a desigualdade sempre me incomodaram. E nunca tive apego material de fato. Aos 15 anos entrei no Movimento Popular de Arte, e teve início minha passagem para uma consciência mais política de quem eu era e em que contexto vivia. Fui capaz de entregar muito mais do que agasalho e comida para as pessoas mais pobres do que eu. Aprendi que poderia ser multiplicadora e comecei a me ver como educadora. Fiz o magistério por vocação. Fiz teatro e música por paixão. E sempre, a partir daí, estive envolvida com a cultura.
A campanha do agasalho não precisa ser atacada para que cada um siga seu processo de conscientização. Porque enquanto o processo de politização acontece, o frio ataca feroz a quem não tem condições de se defender. A hostilidade do clima precisa de uma intervenção para aqueles que têm menos.
Penso onde vive a casa da minha consciência, feita de claudicações, de retrocessos, de retalhos. Quem sou eu, ideologicamente falando, além desta pessoa que se coloca sempre à esquerda, que votaria no Lula novamente, que sabe que a Dilma não é culpada da existência do mosquito da dengue? Sou do bem só porque não estou fazendo o mal? E como será que fico nos meus não raros momentos de omissão? Sempre me impressiona a cena de filme que traduz parte da biografia de São Francisco quando se despe e abandona o direito às riquezas e às posses da família. Tia, troca um agasalho por um discurso? Tia, me paga um lanche? Tia, não mente, me dá uma moeda aí da sua bolsa.
Há momentos em que as pessoas precisam apenas de um abraço e não de uma relação inteira, com começo, meio e fim. O movimento de free hugs me encanta. Algo sublime está proposto ali, quando eu posso fazer a alegria de alguém por um instante. Um gesto intransitivo, que não vai além do momento. Fiz isso com meus alunos uma vez. Saímos da sala de aula, bem juntinhos, com placas ofertando abraços, e percorremos todo o campus de Ondina, em Salvador. Um aluno de outro curso, um pouco mais radical, juntou-se a nós com uma placa oferecendo beijos.
Foram várias reações. E aprendizados. Um grupo foi rejeitado pelo pessoal da Rádio da Facom (Faculdade de Comunicação da UFBA), e isto teve de ser trabalhado em sala de aula porque, para elas, as meninas do grupo, não tinha sentido uma oferta de abraço ser recusada com tanta veemência, beirando a agressividade.
As manifestações de rua que aconteceram no Brasil há poucos dias apareceram como uma onda inesperada, mas bem vinda. Pode e vai ser pensada por diferentes abordagens. Eu me sinto alienada por não ter participado ativamente. Na verdade, fiquei uns dez minutos numa parte da manifestação na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre, mas foi algo como “a manifestação passou por mim”, como nos versos da letra de Chico Buarque: “eu estava a toa na vida, e meu amor me chamou pra ver a banda passar”. Mal, me recuperando de uma gripe, acompanhada por uma amiga tendo crise de vertigens mal explicadas, decidimos ir ao cinema. Pegamos um táxi que, a certa altura, teve de parar porque havia manifestação e bloqueio de ruas. Então, ficamos uns dez minutos na manifestação, com vontade de seguir. Gritamos juntas umas duas ou três palavras de ordem. E seguimos, cabisbaixas. Levemente, porém. Ir ao cinema nos parecia lealdade com o movimento desde que o filme tivesse teor ideológico.
A ocupação da Câmara de Vereadores me seduziu muito e resisti. Não compareci, não acampei, não fiz novos amigos nem vi o momento em que a Ana Flor, menina-bebê, foi modelo mirim numa das melhores fotos de registro da ocupação.
Então, para um pouco de consolo, pensei que nestes dias ocupei a câmera fotográfica, e isso quase me redimiu, quase me concedeu o perdão. Porque com minha câmera e minha rústica, mas emocionada, maneira de usá-la, encontrei pessoas que me entregaram histórias. Os mendigos que gostam de mim e me procuram. E me trazem histórias talvez porque eu simplesmente me disponho a ouvi-las, de coração. Porque são minhas. Sem me sentir antropóloga, socióloga ou documentarista. Simplesmente porque minha história e a história de alguém que nasceu, viveu, cresceu e se entendeu como pertencendo à periferia. Paulo Lins deve saber do que estou falando, como Edvaldo Santana, Akira e Sueli, Claudio e Zulu, Ceciro e Ligia, amigos da Zona Leste de São Paulo.
Ocupar a câmera tem sido minha salvação para muita coisa, nem todas de cunho diretamente político. Se bem que acredito que ser humano é político até quando está em silêncio.
Ocupar a câmera, quando saio pelas ruas, é um gesto político para mim, porque leio as ruas e o que nelas vejo o faço com um olhar que estou me obrigando a afiar todo dia. E tem arte e política juntas neste olhar. A realidade da cidade me chama de outra forma, e isto muda a cada dia e me transforma. Recorto a cidade em pedaços que fazem e desfazem sentidos. Tenho compaixão. Tenho pena. Tenho ódios. Tenho medos. Entro em êxtase e vivo epifanias. Um lenço que cai, uma criança que pega na mão dos pais para atravessar a rua, um mendigo, por que não, cuja figura me atrai, como me atrai um velho sozinho, uma mulher chorando, uma jovem que mostra um olhar distraído de quem preferia a liberdade de estudar ao invés de estar presa ao caixa do supermercado. Roubar a alma da pessoa quando tiro uma foto sem que ela saiba ou registrar aquilo que nela estou vendo e pertence de alguma forma a todos os que estão presos na roda da vida, presos no sistema capitalista do trabalho, presos na solidão, presos na rua, presos nas suas sacadas de onde olham a rua.
Não sei ainda de que consiste minha consciência. Já disse num post do Facebook que as fotos de pessoas vulneráveis não eram mais tão atraentes quanto foram no início. Mas ao mesmo tempo penso que a vulnerabilidade alheia me toca porque fala da minha, que estou tendo coragem de assumir publicamente.
Talvez eu pudesse ter ido às manifestações e devesse ter ido me juntar aos que ocuparam a Câmara com uma placa pedindo: “Me abraça agora porque estou vulnerável”.
Mas não seria um motivo distinto. Seria pessoal demais. Quase egoísta. E eu pergunto de onde sairá a verdade de ir às ruas manifestar indignação pelos acontecimentos grandiosos de exploração do sistema capitalista, no meu caso, se eu não for capaz de cuidar dos acontecimentos mínimos de exploração contra mim, no espaço pequeno que ocupo? Como vou poder reclamar, em voz eloquente, gritos de guerra na rua, palavras de ordem contra o sistema, se eu não estiver atenta aos abusos sutis que permito que sejam cometidos contra mim e que afetam minha alma?
Nada justifica ficar em casa vendo a banda passar, nada justifica não engrossar com meu corpo e com meu grito o caldo e fortalecer a resistência contra o sistema. Não se trata de justificar minha ausência. Preciso tentar entender como posso ser atuante, agente de alguma mudança, na medida em que permito que meu olhar sobre a cidade e seus habitantes, território que eu mais ou menos domino, seja transformado, e eu seja capaz de fazer deste olhar um olhar crítico e compassivo ao mesmo tempo. Visceralmente compassivo, como fez São Francisco em sua nudez. Porque criticar até os brutos criticam. Mas ser compassivo é muito mais profundo. E incrivelmente mais poderoso para transformar realidades. Eu preciso saber o que compõe minha consciência e em que partes de meu corpo reside minha ideologia. Com urgência. Para não perder mais nenhuma caminhada ao lado dos que querem mudar o mundo. Para andar ao lado daqueles que vão caminhando, cantando, gritando e perguntando todo o tempo: Por quê? Por quê? Por quê? Por quê?
*foto de Eliana Mara Chiossi
Querida Eliana,
Foi maravilhoso ler – O tempo: meus pés em pensamento -, percebo e relembro uma angustia que não é só sua, mas que também faz parte da minha realidade.
Sua Escrita sempre muito agradável de entrar em contato.
Beijos e muita saudade.
Rôsangela