Estratégias contra demarcações de terras no RS

No Rio Grande do Sul, se intensificam os ataques às demarcações de terras para comunidades indígenas e quilombolas.

Por Roberto Antonio Liebgott, Cimi Sul-Equipe Porto Alegre.  Foto: Latuff

Nos discursos disseminados nos meios de comunicação, especialmente por autoridades, os problemas causados pelas demarcações são explicados basicamente a partir de três argumentos: o primeiro afirma haver interesses de grupos estrangeiros nas terras indígenas e isso explicaria o empenho de ONGs e entidades indigenistas (de assessoria aos índios) na defesa das demarcações. O segundo afirma que se trata de muita terra para os “índios”, porque estes “não trabalham” e/ou porque arrendam as terras que possuem. O terceiro argumento, e certamente o mais contundente, reitera que não se pode, a pretexto de demarcar terras para índios, cometer injustiças com os agricultores que “produzem” alimentos para a população.

Em um primeiro olhar, esses argumentos podem parecer bastante convincentes, porque estão naturalizados especialmente nos discursos midiáticos e cotidianos, mas eles têm sido utilizados como escudo para desviar a atenção de questões bem mais complexas (a exploração ao meio ambiente, favorecimento aos setores do agronegócio e o racismo institucionalizado). Antes de tudo, é necessário esclarecer que povos indígenas têm seus direitos originários (sobre as terras que ocupam) amparados pela Constituição Federal de 1988 – Art.231 e 232. Tais direitos já estavam resguardados, antes da promulgação desta lei, através de outras normas que a precederam e onde se previa que terras indígenas fossem reservadas aos “índios”. Basta lembrar que as primeiras demarcações de terras – na forma de reservas indígenas – ocorreram há mais de um século. Antes ainda, há registros de que os povos indígenas tenham obtido a garantia de suas terras por serviços prestados ao governo, por exemplo, na Guerra do Paraguai, em 1864. Portanto, não é nenhuma novidade a necessidade de se demarcar terras indígenas.

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Em relação ao primeiro argumento elencado anteriormente, de que nos movimentos em defesa das demarcações de terras indígenas haveria algum tipo de complô de interesses “estrangeiros” contra a “Nação”, basta lembrarmos que as terras indígenas são bens da União, que devem ser protegidas e resguardadas ao uso exclusivo dos povos indígenas. Este dispositivo legal é suficiente para mostrar que, se há interesses estrangeiros sobre terras brasileiras, certamente as áreas indígenas seriam as menos adequadas, porque qualquer investimento sobre elas que não possua a autorização do Congresso Nacional é considerado ilegal. A pressão do movimento indígena e de setores aliados pela demarcação é, portanto, legítima e se orienta pelos termos da própria Constituição Federal de 1988 que estabeleceu, no artigo 67 das Disposições Transitórias, um prazo de cinco anos para que o governo procedesse às demarcações de todas as terras indígenas. Passaram-se 26 anos, e a maioria das terras ainda não foi regularizada. Não bastasse a demora na demarcação das terras, indispensáveis à manutenção física e cultural das comunidades indígenas, elas são ainda vítimas do preconceito, posto que se imagina haver “outros interesses” que as manipulam, como se seus direitos não fossem legítimos.

O segundo argumento contrário às demarcações, no qual se afirma que “é muita terra para poucos índios”, filia-se a um entendimento de que as terras são recursos necessários ao desenvolvimento nacional, regional, local e que, por isso, devem ser produtivas. Nessa direção, indaga-se sobre o porquê de os índios quererem “tanta terra” acionando-se uma lógica racista a partir da qual se avaliam as formas de viver e de trabalhar de todos os povos e culturas a partir dos critérios ocidentais e de uma racionalidade neoliberal, tomada como universal. Por essa ótica racista, só trabalha quem efetivamente faz a terra “produzir”, quem atua sobre ela aproveitando seus potenciais; em oposição, aqueles que desenvolvem uma relação mais respeitosa com o ecossistema e uma atitude preservacionista são vistos como sujeitos que não trabalham, não tem ambição, não sabem dar valor (econômico) à terra.

E o argumento de que se trata de muita terra para os índios se desdobra em outro – de que eles não precisam da terra, por isso a arrendam. Mesmo que eventualmente se registrem casos isolados de arrendamento em terras indígenas, vale lembrar que esta é uma prática ilegal, passível de penalização, e que a fiscalização sobre as terras indígenas é de responsabilidade do poder público. A Constituição Federal instituiu, para as comunidades indígenas, o direito a posse permanente e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231, § 2º). O usufruto nas terras indígenas tem caráter coletivo e não individual e, portanto, o direito é das comunidades indígenas e não de cada pessoa individualmente, não podendo ser utilizadas por terceiros. Se o arrendamento ocorre, tal fato denota muito mais a omissão do poder público, que não fiscaliza e não assegura o usufruto exclusivo aos indígenas, o que prejudica enormemente as comunidades por práticas como estas.

O terceiro argumento contrário às demarcações também pode ser desnaturalizado: trata-se da ideia corrente de que, a pretexto de demarcar terras para índios, não se poderia cometer injustiças com os agricultores que produzem o alimento da população. Para entender essa questão, é necessário retomar alguns aspectos históricos que nos levam a situação atual, em que índios e agricultores disputam as mesmas terras.

Nas primeiras décadas do século XX, sob argumentos positivistas e desenvolvimentistas, os governos empenharam-se em promover a ocupação territorial e a colonização de espaços considerados “devolutos”. Neste período, a literatura sobre o tema registra a ocorrência de inúmeras práticas de “limpeza étnica”, a partir das quais aldeias inteiras foram exterminadas. Centenas de outras comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais e despejadas em outras localidades. Tais remoções forçadas ao longo da história originam os conflitos contemporâneos, posto que, são estas as terras, loteadas e vendidas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul em décadas anteriores, que agora estão sendo pleiteadas para demarcação. Tanto do lado dos povos indígenas e quilombolas, quanto do lado dos agricultores (que hoje residem sobre as terras) há muitos homens e mulheres que vivenciaram aquele período e que relatam os acontecimentos, indicando que nas terras pleiteadas para demarcação existem indícios materiais da presença indígena e de quilombos, como cemitérios, destroços de antigas moradias, restos de artefatos utilizados para caça, entre outros.

Pois bem, se a tradicionalidade da ocupação indígena e de quilombos não pode ser negada, valem os preceitos constitucionais de que estas terras – no caso das indígenas – são bens da União, que são inalienáveis e indisponíveis e que os direitos indígenas sobre elas são imprescritíveis (Art. 231, §4º). Não é possível, portanto, imaginar que o erro cometido pelo Estado – ao disponibilizar para colonização e titular terras que não lhe pertenciam – não seja corrigido agora para evitar que ocorra uma injustiça contra os agricultores. É necessário, isso sim, exigir que o Estado responda por seus erros sem que se penalizem os agricultores, estes que, com seu suor, produzem alimentos. Eles têm direito a uma justa indenização e a uma alternativa viável, que deve ser apresentada pelo Estado, para continuar a viver da agricultura, em terras legalmente tituladas e compatíveis com seus modos de produção.

Também é importante lembrar que, entre os injustiçados, as maiores vítimas são os povos indígenas e quilombolas, porque não têm acesso às condições mínimas de vida, estão confinados em pequenas porções de terra. Exemplo disso é o que ocorre na área indígena Estiva, onde 40 famílias do povo Guarani sobrevivem em apenas sete hectares. Outras tantas comunidades indígenas vivem em acampamentos provisórios, aguardando que o poder público realize os procedimentos de demarcação: são pelo menos 18 acampamentos situados às margens de rodovias no estado do Rio Grande do Sul. Não é por acaso, portanto, que os maiores índices de desnutrição, de incidência de doenças e de mortalidade infantil são registrados entre as populações indígenas.

E mais uma vez, por falta de vontade política para proceder às demarcações das terras indígenas e quilombolas, se apresenta como alternativa a remoção das comunidades para pequenas áreas adquiridas pelo estado. A pergunta que fica, diante destas propostas, é: por que o governo não oferece terras para o reassentamento dos agricultores? Aos povos que estão em luta pela demarcação às propostas apresentadas significam, no limite, a negociação do direito constitucional. Através do reassentamento em pequenas porções de terra e de assistência às necessidades básicas, as comunidades abririam mão de territórios tradicionais que hoje estão em processo de demarcação, “finalizando-se” assim os conflitos. Essa é uma solução que se supõe justa e pacífica, mas penaliza os povos originários, e mais uma vez se pratica uma violência contra estes.

Aliás, violenta é também a forma de assédio que algumas comunidades vêm sofrendo, quando servidores do poder público estadual apresentam como única alternativa, neste contexto de disputas, a transferência de famílias indígenas para áreas que o estado está oferecendo, caso contrário, em não aceitando a proposta, permanecerão indefinidamente em acampamentos provisórios e em situação de abandono e de desassistência. Causa estranheza e preocupação o fato de o governo do Rio Grande do Sul em suas investidas para a remoção das famílias indígenas não apresentar como alternativa imediata à conclusão do procedimento de demarcação do “Parque Estadual de Itapuã”, atualmente administrado e explorado economicamente pelo Estado. Os estudos realizados pela Funai comprovaram que o parque é terra tradicional do povo Guarani.

Por fim, não se pode a pretexto de retirar os “índios da beira das estradas”, impor-lhes o castigo de nunca mais terem direito a demarcação de suas terras. Infelizmente vem sendo realizados acordos que prevê a redução dos limites de terras já demarcadas, caso de Mato Preto em Getúlio Vargas (onde o próprio procurador do MPF participou da negociação), bem como a transferência de comunidades para áreas distantes de suas terras tradicionais, casos das comunidades Guarani do Arroio do Conde e Irapuá.

Na prática, os governos fazem uso da situação de miséria e pobreza em que se encontram algumas comunidades indígenas para relativizar o alcance de seus direitos constitucionais e impor, como contrapartida, medidas paliativas e compensatórias. Perpetuando-se, com isso, as injustiças aos povos indígenas e quilombolas.

Em 07 de fevereiro de 1756 os Exércitos da Espanha e Portugal se uniram para massacrar os povos indígenas que lutavam pela defesa de seus territórios. Em uma das batalhas foram mortos mais de 1500 guerreiros Guarani e assassinado Sepé Tiaraju. Continua a luta de Sepé e seus companheiros 258 anos depois. Os povos indígenas e quilombolas, como naquele período, permanecem em batalha contra as injustiças, a discriminação e pelo direito de viverem num pedaço de terra.

Porto Alegre, RS, 07 de fevereiro de 2014, dia de Sepé Tiaraju.

 

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