por Douglas Freitas, editor da Revista Bastião.
– negócio é o seguinte, mano. leva o isqueiro. um dia, quando a gente se cruzar de novo, tu me devolve.
antes de largar na do cara, decidi por aceitar o convite. deixei ele de mão estendida, guardei o isqueiro no bolso:
– quer saber? vamos dar essa banda. vou contigo ali embaixo do viaduto.
tínhamos nos topado minutos antes, onde a avaí se encontra com a loureiro. era quatro da manhã de um sábado. vinha reto em minha direção, cruzando a rua. falei primeiro:
– qualé que é, mano?
– tem os apetrechos?
– não sei do que tu tá falando; pra fumar um?
– aham.
– um cachimbinho?
– não. isqueiro mesmo.
– pode cre, ta aí.
– agora não. tenho que lá buscar a pedra.
em nenhum momento parei, todo esse papo foi rolando avaí adentro. só nós na rua. depois de umas onze da noite, por aí, o movimento da avaí se restringe a quem volta da cidade baixa a pé, aos poucos carros que vem pela joão pessoa e usam a tuiuty para subir para a salgado e mais comumente para a independência e à gurizada frequentadora da boca que se instalou há poucos meses embaixo do viaduto da joão pessoa. o nome do cara era vicente loureiro, ou algo assim. ele era um desses caras que ficava rumando pela imediações do viaduto durante a madrugada. alguns, como ele, caminhavam na busca do que faltava. no caso dele, o isqueiro. outros catavam latas nos conteineres de lixo para usar de cachimbo, alguns assaltavam pela andré da rocha em busca da grana suficiente, tinha quem era a causa dos vidros de carro estilhaçados pelas calçadas da própria avaí. tem quem fizesse mais de uma destas em uma tacada só. como também é certo que alguns iam ao viaduto com seus cinco pila no bolso, direto ao ponto.
– tu já fumou pedra?
– não.
– ih, tu não sabe o que é bom!
– cinco segundos de prazer. e depois?
– tu já transou com duas mulheres? a sensação é melhor que essa.
caminhava de lado, enquanto falava. para não tirar o olho de mim, tava obstinado na tentativa de convencimento. ele não tinha nada a ver com a boca. não ganharia um mirreis com eu fumando. hoje suspeito que queria um parceiro.
– vamos lá comigo? vamos lá comprar.
– não eras, mano, tô chegando em casa.
eu não queria papo, a preguiça falava mais alto. ele insistia enquanto eu dizia que ele podia ficar com o isqueiro. por que não?, pensei. eram histórias o que procurava naquela noite e nos meus sonhos. o que poderia me proporcionar melhores lembranças? o travesseiro de sempre ou um prolongamento na noite, provavelmente para um lugar que eu não iria sozinho. não naquela noite. e, mesmo se fosse, conhecer a boca com o vicente e acompanhar sua jornada era diferente de ir sozinho, era diferente de ir com qualquer outro. mais uma: sai aquela noite sem meu celular e tinha uns cinco pila no bolso. quando saia assim, tava pouco fodendo para quem cruzasse comigo.
dois caras sentados num meio-fio embaixo do viaduto faziam a mão. um desempacotava as pedras e alcançava para o que recebia a grana. quando chegamos, ele contava um maço de grana sem se importar com a quantidade de gente na volta. todos me olharam, mas sem eu merecer maiores movimentos. querendo justificar minha presença, olhei pro cara da grana e perguntei se rolava um beck.
– aqui a gente só vende pedra, respondeu irritado, nitidamente me querendo longe dali.
enquanto o vicente fazia a mão, o que não demorou um minuto, notei vultos se avastando e mais gente chegando atrás da gente. o fluxo era grande. voltamos por onde chegamos, pela praça em frente ao bar xiru. sentamos em um banco próximo à rua e ele me disse para esperar que já voltava, precisava de uma lata, naturalmente. no tempo que eu tava ali sentado, uma dupla e dois caras sozinhos fizeram o mesmo caminho que acabávamos de fazer. puxei a manta até o nariz e fiquei de boa: tava no escuro e tinha a certeza que ninguém viria falar comigo. com o olhar, acompanhei a ida do vicente até onde podia ver. pensava na minha noite, no como tinha chegado ali. pensava nele. quando voltou, uns cinco minutos depois, foi que descobri que se chamava vicente.
– e quantos anos tu tem, vicente?
– 38. e te digo mais. 38 tendo um romance com uma modelo linda 10 anos mais nova. eu sei que ela ainda me ama.
hoje viajo que esta modelo pode ser qualquer coisa: uma menina que fez um dia um book de fotos no centro de porto alegre, realmente uma mulher que foi modelo de algum comercial, uma menina que tinha como maior sonho ser modelo e ele apaixonadamente assim a chamava. pode ser qualquer coisa, qualquer. e com certeza quem ela realmente é deve ser bem mais incrível do que qualquer coisa que eu imagino.
– a família não existe mais.
– te afastou?
– me afastei.
me encarou com cumplicidade.
encontrara a lata “só lá pela praça argentina”. além da lata de coca-cola, depositou um punhado de baganas de cigarro em cima do banco de cimento. a princípio, imaginei que fosse para dar uns pegas depois da loucura. na aula que estava por começar, me revelou seu verdadeiro fim. didaticamente, me deu toda a morta:
1) destaque o anel da lata e quebre-o ao meio, fazendo uma ponta afiada de uma das partes;
2) amasse a lata bem no meio, com a intenção de permitir que algo ali seja depositado, sem escorregar pela superfície originalmente redonda;
3) segure o anel e faça pequenos furos neste local da dobra. em torno de dez, um próximo ao outro. quem tem mais carinho, pode optar por formas geométricas. vicente, no caso, furava aleatoriamente, somente respeitando a distância.
4) (e aqui no quatro me veio a surpresa) pegue as baganas de cigarro e desfaça seu invólucro, depositando o tabaco em cima dos pequenos furos que acabaste de fazer.
5) com um isqueiro (neste caso, o meu isqueiro, ferramenta-motivo de eu estar ali), queime o tabaco depositado em cima da lata. se você é apreciador do fumo, é permitido aproximar a sua boca da boca da lata e tragar. se não, apenas queime com a mentalidade de estar formando uma “caminha de cinzas”, em que logo logo a pedrinha branca vai adormecer.
6)…
antes do passo seis, fomos interrompidos.
– saiam daí, vocês não podem fumar aí.
quem alertou era um dos caras da boca, chegou até ali por fofoca de alguém. o motivo sermos corridos era estarmos ao alcance da vista das janelas dos prédios e da proximidade da rua, em que alguns carros incansavelmente passavam – e iriam passar a madrugada toda, fazendo o balão da loureiro para joão pessoa. não podíamos sujar a boca. vazamos. fomos ali para perto. vicente se atirou no chão em meio de umas raízes de uma árvore, ao lado de onde hoje está situado o comitê político do candidato a deputado federal claudio janta. sentei em uma das raízes, observando tudo de cima.
retomamos, por fim:
6) deposite com cuidado a pedra em cima da cama de cinzas. está feito o cachimbo.
7) agora é aproximar a boca da boca da lata e, com o isqueiro, ir tostando a pedra.
vicente deu duas tragadas e foi só, levantou atordoado e disse que tava vazando. me despedi ou convidei ele para irmos pela joão pessoa, não lembro bem. não importa, para ele essa minha frase não existiu. enquanto falava, ele já ia, em direção ao edel trade center. antes de dobrar onde eu já não podia mais ver, me gritou:
– aparece pela volta do gasômetro e vamos fumar um, é lá que eu vivo.
voltei para casa pensando em tudo, principalmente no que me dissera instante antes de queimar a pedra. aquilo tudo tinha dedicatória:
– essa aqui primeiro é por deus, segundo pela modelo.
e tacoulhe fogo.
Bá, Douglas… tu deu esse rolê? Ainda mais com cinco pila no bolso… eu não seguraria minha onda e teria ido pra pedra junto. 😛