Hoje, uma parte da população descobriu que também pode caminhar pelas ruas.
Milhares de pessoas devem ter participado de uma passeata pela primeira vez. E se sentindo estranhamente seguras, ovacionaram os policiais militaresque as acompanhavam. “Os nossos heróis do dia a dia, que estão aí nos ajudando”, alguém homenageou no alto falante de um dos carros de som, seguido por aplausos entusiasmados. Experiência exatamente oposta tem a gente pobre que morre nas ações “heroicas” da polícia em bairros de periferia. Não era de se surpreender com um sósia do Rambo acenando de cima de outro carro de som, nem do comentário de um manifestante, que já escutei pela metade: “Por isso que a bala tem que comer. Só a bala mesmo!”, sentenciou. Precisava ter ouvido qual o contexto da conversa? Faz diferença?
“Mais solidariedade, menos corrupção”, dizia um cartaz. “Não ao socialismo” e “Socialismo = roubo”, bradavam cartazes capitalistas se sentindo solidários. Será que não sabem qual é o sistema econômico no Brasil? Será que não sabem como funcionam os grandes negócios no capitalismo? Ou é conveniente esquecer agora?
“Nós somos pela democracia e eles pela ditadura bolivariana”, reclamava a colega de quem pedia “Fora o Congresso” e de outro que acredita que “Golpismo é urna eletrônica”.
“É hora de mudar o Brasil”, descobriu a garota, depois de mais de 1.500 anos. Talvez livrando-o do comunismo ou da doutrinação marxista nas escolas, como defendiam outras “denúncias”. Ou atendendo o apelo de “Resista: a Venezuela não será aqui. Nunca!”
Difícil este 15 de março. Desilusão e tristeza me bateram forte, na esquina em que vi o país numa encruzilhada. E na qual o racismo e o preconceito desfilaram tranquilamente. Um senhor negro, dirigindo uma pequena van de entrega de gás, com um adesivo da Petrobras, foi o primeiro a ficar trancado em frente à marcha, ali naquele cruzamento. Com um sorriso largo no rosto, pegou uma bandeira do Brasil que fazia dançar de um lado pra outro. Uns ficavam admirados com o apoio, mas não faltou quem tirasse sarro dele com gritos de “Alemão! Alemão! Olhos azuis!”. Em outras mãos, um homem indicava: “Tofoli, vai pentear macacos”. E na faixa que uns quatro seguravam: “A mentira tem perna curta, nove dedos e língua presa”. Dos cantos entoados, um dos preferidos era: “Lula cachaceiro, devolve o meu dinheiro”. Qual dinheiro?, pensei em perguntar. O da corrupção em que estão envolvidos boa parte dos partidos políticos e muitas empresas de gente rica que convive com vocês? Ou o do que foi investido em outras classes sociais? A conciliação de classes com um “governo de coalizão”, imaginada por alguém, ainda não existiu.
Por retirar do meio deles minhas anotações enquanto desfilavam, muitos me miravam dentro dos olhos, e sem uma palavra nos reconhecíamos em mundos diferentes que se encontravam ali por conta de uma circunstância que tanto os incomodava quanto a mim. Mas nenhum sequer daqueles manifestantes segurou seu olhar até o fim. Não sei com qual dignidade reivindicam este “novo país” para si.
Pessoas que não reconhecem o valor do lugar onde nasceram: “Chega de sentir vergonha de ser brasileiro”, empunhava uma senhora que deve se sentir melhor em Miami. E se inspiram em políticas de nações que julgam ser mais felizes: “Liberalismo. Menos Estado. Privatização da Petrobras e outras estatais”, foi um pedido.
A mídia estava representada em adesivos colados ao peito: “Olavo tem razão”. O articulista da criminosa revista Veja teve bastante crédito por ali. A mensagem da elite econômica é clara: “Fora Dilma! Fora PT! Fora Bolivarianismo!”
O Partido dos Trabalhadores tem parte nisso. Teve a pretensão de governar para todos e fracassou. Depois de graves omissões que doeram em movimentos populares que lutam por direitos legítimos e constitucionais, e de tantas alianças equivocadas para ter governabilidade, para muitos militantes sociais a sensação é quase como se o PT tivesse se transformado num partido de direita mais à esquerda. Mas os ricos desistiram de fazer esta concessão, de entregar parte das riquezas. Colocaram a mídia a fazer a cabeça da classe média, que se identifica com os ricos. Querem no poder o partido e as políticas mais à direita possíveis. Nada de dividir parte dos recursos com esta gente que uma senhora muito maquiada, com uma bandeira do Brasil enrolada embaixo do braço, definiu assim indo para a manifestação: “Aqueles nordestinos votaram tudo nela. Se venderam por bolsa família. Aquilo não tem raça definida. Uns ‘pelo duro’, como dizia meu pai, descendente de alemães. São pior que cachorro!”
Duro ouvir isso para quem tem aprendido que somos todos irmãos. Para quem acredita que estamos ligados por uma mesma energia divina, e que compartilhamos o mesmo planeta como a casa de todas e todos. Não sei qual o nome que um dia se dará à nova sociedade que vamos precisar construir, como condição para a nossa própria sobrevivência. Mas nela este tipo de capitalismo reverenciado na manifestação de hoje não estará. Porque está baseado no ódio e não no amor.
Por Jefferson Pinheiro, do Coletivo Catarse