De como o preconceito livrou minha mãe dos chatos

Por Eliana Mara Chiossi.

Dias de muito calor aqui em Porto Alegre e de vez em quando uma promessa de chuva. Começo de ano há mais de dez dias e não cumpri nenhum dia de acordar cedo para caminhar. Já estou no meu estado permanente de dieta, e isto me faz voltar ao vício, e como chocolates. Fernando Pessoa, vestido de Alvaro de Campos, me liberta, com seus versos famosos: Come chocolates, pequena;/Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates./Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Esta manhã, sem ter ido a caminhada alguma e ainda enfiada confortavelmente no meio das cobertas, recebi mensagem no meu celular. Era meu editor dizendo isso: “Tens até as 10h para não quebrar tua coluna”. Li aquilo assustada, não entendi quem estava falando e achei que era um pesadelo. Demorei para entender que era a deadline para enviar a coluna semanal do site. Saltei da cama e, sem café logo cedo, o fiz com um humor péssimo. Decidi remodelar uma crônica já escrita que minha mãe adora, imprime e leva para todo canto. Quando pode, abre a bolsa e pede para ler a crônica feita em sua homenagem. Esta crônica, portanto, é algo assim como pão de ontem requentado, mas cheia de boas intenções. Cá entre nós, desculpas esfarrapadas não funcionam quando você se compromete a escrever um texto por semana. Admito que entregar a crônica no prazo é o mesmo que cumprir aquela lista de promessas do Ano Novo: fazer dieta, telefonar menos para o namorado, aprender inglês, aprender a manobrar o carro de ré, cortar o açúcar, rever amigos e etc..

Tenho pensado no tema da guerra dos sexos. Em quase todos os eventos que vou, que estejam relacionados a autoconhecimento, encontro uma multidão de mulheres e raríssimos homens. Li uma frase que diz que sendo o diamante o melhor amigo das mulheres e o cão o melhor amigo dos homens, podemos entender qual dos dois sexos é mais sensato. Os cães suportam tudo e não reclamam. E lambem os beiços dos donos, mesmo que estes não estejam escovando os dentes há dias. Não quero dizer que todos os homens são descuidados com a higiene pessoal, mas sem uma figura feminina insistindo, vocês acham que os homens se preocupariam com a limpeza e higiene por conta própria? Não creio. Queria ter um homem aqui, agora, insistindo para eu sair da cama cedo e sair caminhando. Poderia também fazer o café da manhã para mim. E aproveitando que estaria na cozinha, poderia lavar a louça. Bah, isso são coisas que se diga numa coluna? Mas fui retirada da cama abruptamente, portanto, perdoem.

Estou naquela fase de ligar a tevê e me deitar no sofá todas as horas em que me dá vontade de fazer ginástica. Retomei minha rotina de exercícios físicos deixando o par de tênis à mostra, limpinho até nos cadarços. Comprei um par de meias para me motivar e sinto, com essas pequenas ações, que já estou me movimentando. Para que exagerar? Acordar às seis da manhã e dar de cara com um dia chuvoso me faz pensar que o tênis e as meias, novinhos em folha, vão ficar encharcados de lama. Eu sei que Deus ajuda a quem madruga, mas a canção diz que dormir não é pecado, e eu concordo com isso. Mas acordar de manhã com o Sol já esquentando a cabeça não me dá desculpa nenhuma. Então, vamos falar de outro tema, para que a coluna esteja pronta antes das 10h e seja publicada ainda hoje.

O tema é preconceito, que, se não é uma virtude tampouco é considerado pecado, pelo menos não oficialmente. Consideremos, por ora, apenas como uma fraqueza humana, que causa muitos danos, afasta as pessoas e provoca guerras. Sou uma pessoa livre de preconceitos, mas não confio na inteligência de mulheres loiras. Uma personagem clássica da literatura inglesa, chamada Polyana, certamente loira, propunha um jogo para lidar com as dificuldades da vida: ver sempre o lado bom das coisas, ainda que tudo dê errado. Depois que as coisas ruins acontecem, e você sobreviveu a elas, até dá para fazer limonadas. Ou tequilas. Alguns programas de televisão apresentam, para provocar risos, cenas em que as pessoas sofrem acidentes, e todos riem. Espera-se que, todas as pessoas filmadas batendo a cabeça na parede, escorregando de um balanço ou sendo atacadas por um cão raivoso, estejam bem e gozando de plena saúde. Essas cenas provocam risos de quase todos. É possível rir da queda de um ente querido se ele não perde a perna ou fratura o crânio. Dá para rir do tombo do filho pequeno se não for preciso levá-lo ao pronto-socorro. Quem passa por situações em que é vítima de preconceito sabe que pode ser muito doloroso. Falando apenas de acontecimentos menores, em que o preconceito não seja a causa de um holocausto, é possível descobrir o lado bom de certas situações constrangedoras. Minha mãe pode comprovar isso, pois aprendeu a usar o preconceito para se livrar dos chatos.

Minha família mora num bairro da periferia de São Paulo. Bairro que cresceu muito e criou suas subperiferias. A casa de meus pais fica na zona chique e é confundida com casa de ricos. A fachada é muito bonita, bem cuidada. Observando a fachada ninguém poderia imaginar quanto tempo minha mãe passou reclamando com meu pai, dizendo que a casa precisava ser reformada, antes que caísse. Nessa época, havia umidade nos quartos, a pintura estava desgastada e o telhado da casa do Jimmy, o poodle maluco, estava quebrado.

Mas voltemos à fachada, que é o espelho da alma de minha mãe: feita de muito zelo, cuidados e um jeito todo especial com as plantas, com quem ela aproveita para conversar e reclamar de meu pai. Para deixar a fachada mais bonita, minha mãe lava até a calçada. Enquanto lava, conversa com as vizinhas, vê o movimento dos alunos da escola que fica em frente e, sem perceber, se diverte muito com a rotina. Essa calma aparente dura pouco, pois, como nordestina que é, concorda com Euclides da Cunha e se diz uma sertaneja muito forte, com todo orgulho de ser pernambucana.

Sempre que estava ocupada nesse trabalho cuidadoso, era interrompida por vendedores e religiosos, desses que possuem um traço comum: são muito chatos e muito insistentes. E ela nunca entendia o fato de eles terem uma disponibilidade quase infinita de encher o saco. Como se não houvesse outras donas de casa para aborrecer, passavam muito tempo tentando convencê-la a comprar algo ou entrar para alguma igreja. Certa vez, uma mulher bem vestida, loira – diga-se de passagem -, com jeitinho arrogante e voz enjoada, perguntou:

– A patroa está?

Minha mãe parou, com a vassoura na mão, e parece que algumas plantas se moveram, prevendo guerra. Ela permaneceu quieta por alguns segundos, com a boca entreaberta e uma das sobrancelhas levantada. Quem conhece o gênio de minha mãe, e isso explica o rabo entre as pernas de Jimmy, saberia que aquele era um momento tenso. E a vassoura poderia se transformar numa arma. A loira, totalmente sem noção do perigo, repetiu:

– Você está surda? Vai chamar sua patroa!!

Esqueci de dizer que minha mãe é negra. É baixinha e magra, muito ágil no seu corpo em forma. Além de tudo, tem uma energia inesgotável. Um dos pontos altos do seu caráter é que ela não tem papas na língua e nunca leva desaforos pra casa. Tamborilando os dedos no cabo da vassoura, mordeu os lábios, olhou para a loira oxigenada e respondeu:

– A patroa? Você quer falar com a patroa? Ah, não vai dar não, porque a patroa saiu e não volta mais hoje. E me dá licença que eu tenho que lavar logo essa calçada senão ela me despede.

Disse isso e rapidamente fez um movimento com a vassoura, jogando água suja na calça bege da testemunha de Jeová. Minha mãe, fingindo humildade e segurando o riso, pediu desculpas, fechou o portão e foi para dentro da casa.

O insight libertador era o ápice após ter vivido inúmeras outras agressões semelhantes. Ao ver uma mulher negra, com a vassoura na mão, na frente de uma casa supostamente de proprietários ricos, a evangélica concluiu que era a empregada da casa. E, dessa forma, por preconceito, perdeu uma ovelha para o seu rebanho. Em outros tempos, minha mãe teria posto a oxigenada para correr, usando a vassoura. Desta vez, simplesmente resolveu tirar proveito da situação e nunca mais foi importunada por nenhum tipo de chato vendedor de lotes no céu ou eletrodomésticos em sessenta prestações. O preconceito, neste caso, ajudou muito e foi melhor para ela. A casa hoje está reformada, mas meu pai continua o mesmo preguiçoso de sempre, e ela segue a rotina, da qual reclama, religiosamente.

Sirva isto para dizer que, para fugir do constrangimento do preconceito, vale driblar aqueles que agem nos julgando pelas aparências. Dia desses, saí decidida a comprar um creme caro, que cumprisse a promessa de me livrar das olheiras. Era meu dia de folga, e fui até a loja especializada em produtos para pele, bem próxima de minha casa. Saí com roupa de folga, meio despenteada. Afinal, eu iria apenas fazer uma compra. Entrei na loja, e a vendedora caminhou lentamente em minha direção, com certo desânimo. Pedi a ela que me mostrasse os cremes disponíveis. Ela me olhou com ar de pena e disse que o creme de preço acessível já havia acabado, e os outros custavam muito caro. Demorei uns segundos para entender o insulto, porque era cedo, e eu estava ainda meio sonada. Minha porção espanhola misturada com a porção sertaneja colocaram a mão na faca, escondida na bota imaginária. O sangue já estava em ponto de ebulição, quando me lembrei de minha mãe. Abri a bolsa, coloquei calmamente no balcão uma seqüência de cartões de crédito, desses que denotam grande limite: Platinum, Gold, Plus, etc.. Alguns deles estavam sem uso por falta de crédito, mas eram coloridos e formavam um conjunto que humilhava a assalariada. Abri a carteira, com seis notas de cinqüenta reais, seis notas de dez reais e mais o dólar da sorte. Abri o talão de cheques para que ela visse que era de uma conta especial Estilum, do Banco do Brasil. Perguntei:

– Você aceita algum desses cartões? Ou o cheque especial? Posso pagar à vista, se for preciso.

Completamente sem graça, me pediu desculpas. Pedi, então, que ela me mostrasse tudo que havia disponível: para evitar olheiras, para diminuir as rugas, para bronzear, para tratar cravos e espinhas. Comecei a falar com ela usando termos sofisticados, dei um jeito de dizer que era professora doutora da Universidade Federal da Bahia (na época eu morava em Salvador). Apareceu logo um copo de água e um café quentinho. Depois que ela estava cozida em banho-maria, quase pronta para ser servida, dei de ombros, suspirei um tédio simulado, elogiei o café e disse que não iria levar produto nenhum. Saí e dei de cara com o Sol a pino, folhas verdes da grama bem aparada, na pracinha do meu bairro, reduto de classe alta. Ri, achando graça naquilo tudo, aproveitando a lição sábia de Dona Cinira. Sirva isto para dizer que uma das vantagens de entender como o preconceito funciona, é poder reverter a situação e rir dela. Claro que, para isso, é preciso ser a dona da casa, como minha mãe, ou ter cartões de crédito disponíveis, como eu. Todas as coisas da vida têm sua filosofia. E a moral dessas histórias pode ser: faça chuva ou faça Sol, tenha sempre doses de bom humor na bolsa.

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