Por Eliana Mara Chiossi.
Quando eu tinha 17 anos, vivia pelas ruas do centro de São Paulo, onde houvesse cultura, arte e manifestações de movimentos sociais. Eu era uma adolescente da periferia, embriagada de poesia e amor pelo teatro. Talvez a política, ensinada pelo meu padrasto, que me fez de esquerda, fosse meu mínimo entendimento. Eu era de esquerda porque era a favor dos mais pobres, era a favor da solidariedade, da liberdade, do amor pelo próximo. Sem ter religião, desde aquela época, os personagens do filme Hair eram meu mundo e minha tradução. Tive namorados argentinos, chilenos, bolivianos. Muitos estavam fugindo de uma história que eu pressentia, mas conhecia pouco, nos seus termos mais políticos e mais profundos. Eu conhecia a superfície do exílio, eu conhecia a superfície do medo. E apoiávamos, na residência estudantil onde eu vivia, qualquer vizinho latinoamericano que precisasse de abrigo. Mas, no fundo, hoje eu sei, eu era uma ingênua sobre muitas coisas. Nunca tive coragem de ir até o fim naquele livro “Brasil Nunca Mais”, sobre a tortura. E, ao mesmo tempo, estive pichando muros e fugindo da polícia na época em que o PT começava e lutava pela volta da democracia. Tive medo quando certa vez um carro com policiais parou em frente a nós, eu e meus primos, com freios fazendo barulho. Saíram com as armas apontadas na nossa direção, que apenas esperávamos um ônibus para voltar para casa após uma festa familiar. Queriam saber o que aquele “negro” (o Bira, Ubirajara, namorado da Ormene, minha prima branca) fazia no nosso grupo. Todos assustados, explicamos a situação. Fizeram uma cena de tortura moral e foram embora, e ficamos ali, sentados no chão, abraçando Bira e abraçados uns aos outros.
Fui para o Chile. Por vários motivos. O principal é que, dia 29 de janeiro, completei 50 anos. E isso me deu medo. Isso me levou a um lugar estranho, de um temor novo, de uma necessidade urgente de fazer da minha vida, outra vez, uma vida que tenha sentido. De me entender como pessoa, neste mundo, ainda tão injusto, ainda tão capitalista, ainda tão violento. Inicialmente, iria sozinha. Mas surgiu uma ideia de fazer um documentário intitulado “50 anos e (é) só”. Encontrei uma amiga, cineasta, fotógrafa e escritora, sensível demais ao que se passa nas fronteiras, sensível demais ao que se passa com as pessoas em situação de vulnerabilidade, que concordou em viajar comigo. De certo modo, ela foi sensível com minha vulnerabilidade, foi sensível com meus medos. E partilhamos esta coragem de partir numa viagem sem planos.
Chegamos de volta ontem. Para sair do Chile levamos três dias, por questões logísticas e financeiras. Ontem, saindo de Buenos Aires, rumo ao aeroporto de Ezeiza, por algum equívoco meu, chegamos quando nosso vôo já estava fechado e teríamos de dormir por lá mesmo, pagar uma taxa e pegar outro avião, hoje, às 6 da manhã. No balcão da companhia aérea Gol, comecei a chorar. E chorei muito. Chorei sem economia, na frente da funcionária que repetia que teríamos de pagar uma taxa e só teria vôo no outro dia. Ali, naquele momento, toda a viagem voltou, atravessando meu corpo. E o choro talvez fosse uma reunião de motivos: cansaço, alegria, os mortos de Santa Maria, a visita ao Museu da Memória no Chile (horas antes de pegar o ônibus para Buenos Aires), fotografar a Plaza de Mayo, dormir na cama onde havia tido noites de amor com um namorado que se foi. Tudo junto, tudo ali, naquela hora, era motivo suficiente para o choro demorado e sem hesitação. A outra funcionária não suportou. Olhou melhor no seu computador e viu que havia uma possibilidade. Sem cobrar taxa alguma, nos encaixou num vôo para São Paulo e de lá em outro que chegaria em Porto Alegre quase à meia-noite.
Poderia dizer que a viagem começou com choro e alegria e terminou com choro e alívio. Mas não posso dizer que a viagem acabou. Neste momento em que escrevo, estou feita desta viagem. Meu corpo está nesta viagem. Minha alma ainda nem chegou. E talvez haja dois ou três textos nesta coluna sobre esta viagem. A ideia é fazer desta viagem um documentário intimista e revestido de sentidos biográficos, mesclando nossa epopeia com os depoimentos que colhemos das mulheres que encontramos. Mas não é só isso. Com câmeras no pescoço, nos pediram fotos, nos deram seus nomes, nos entregaram suas histórias: casais de namorados, mulheres, homens, várias pessoas. De um modo ou de outro, a viagem esteve sempre repleta de pessoas ao redor. Eu e Fran Rebelatto filmamos, fotografamos, nos emocionamos e rimos. Choramos quando soubemos de Santa Maria. Mas a viagem seguiu, e rimos depois, porque a vida seguia e nos entregava motivos para emoções distintas.
De todos os momentos vividos, dois entre eles se destacam na minha memória: a visita a La Chascona (uma das casas de Pablo Neruda) e a visita ao Museu da Memória. Momentos marcantes. E, nos dois momentos, revivi minhas leituras de Walter Benjamin, quando este fala sobre a aura. Naqueles dois espaços, a aura da história está lá, viva e pulsante. Saímos da casa de Pablo Neruda, e eu não conseguia deixar de sentir a presença física dele na minha pele. Saímos do Museu da Memória, e a dor pelos torturados, pelos que foram cercados junto com Salvador Allende, me dava arrepios. A voz de Allende antes de se suicidar, para não se render ao golpe, transmitida para a rádio, no momento do cerco, voz cercada pelos tiros, essa voz me acompanhou até quando saí na rua, e o sol estava brilhando com exagero.
Nesta viagem, conheci o Chile, país que me era desconhecido até então. E descubro, ao sair de lá, que há muito ainda para conhecer. Porque a América Latina precisa ser conhecida, diariamente, entre nós, brasileiros, para que sempre saibamos que fazemos parte da mesma história. Quando estive em Sâo Miguel das Missões e vi as ruínas da colonização, lá onde os indígenas foram executados, que diferença faz de andar pelas ruas de Santiago sem ver os Mapuche e sabê-los também executados, deslocados porque perderam seu lugar?
Há muita coisa a dizer sobre esta viagem. Mas fazer 50 anos no Chile é lembrar os versos de Violeta Parra e abrir o coração para os próximos. Pouco importa qual é a minha idade. Estou apenas começando. A voltar aos dezessete, para o lugar das minhas melhores perguntas, para o lugar das minhas melhores certezas:
Volver a los diecisiete
después de vivir un siglo
es como descifrar signos
sin ser sabio competente,
volver a ser de repente
tan frágil como un segundo,
volver a sentir profundo
como un niño frente a Dios,
eso es lo que siento yo
en este instante fecundo.
*Foto da capa: Fran Rebelatto