Grata por fazerem barulho diariamente

Por Eliana Mara Chiossi.

A construção civil é responsável por grande parte do emprego das camadas pobres da população masculina, e também considerada uma das mais perigosas em todo o mundo, liderando as taxas de acidentes de trabalho fatais, não-fatais e anos de vida perdidos.
Vilma Santana

Não. Esta não é uma coluna de auto-ajuda. Mas vou tentar falar do caderno da gratidão, enquanto ouço os últimos sons dos operários lá fora. Há um novo prédio sendo construído ao lado do meu. Já na construção vai fora um tanto da minha liberdade e da minha privacidade. Logo serão outros moradores e seus ruídos. Seus automóveis chegando. Seus filhos chorando ou gritando. Algumas surpresas, alguns incômodos.

Por enquanto, observo os trabalhadores. Na hora do almoço, religiosamente, eles se dividem em dois grupos e jogam uma partida de futebol. Penso que almoçam rápido para aproveitar mais o tempo de folga. Poucos deles apenas assistem, e outros, raros, cochilam. Nestas partidas, minha casa fica cheia de vida. Porque de algum modo eles entram aqui nesta sala onde estou e gritam, falam palavrões, contam piadas, celebram um gol e maltratam um goleiro ruim.

Faltam quinze minutos para eles partirem. São 17:45. Às 18:00, não estarão mais aqui. Imagino sua trajetória de volta para casa. Cansados, enfrentando transporte coletivo numa fase em que o trânsito da cidade está caótico, já que decidiram desmontar as avenidas todas ao mesmo tempo. Para quê? Para a Copa, me parece. E a Copa, para mim, fica sendo algo cada vez mais incômodo e cada vez mais irreal. Um nome para explicar insanidades públicas. Não me interessa. E não adianta muito reclamar a esta altura.

Amanhã, se eu acordar depois das 8 horas, os primeiros barulhos dos homens trabalhando será, como tem sido há meses, meu primeiro contato com o mundo. E vou me espreguiçar, resmungar, caminhar lentamente para o banheiro, escovar os dentes, dar alguns telefonemas, olhar a internet, tomar café, fazer o que há para ser feito em casa e antes de sair, olhar pela janela e vê-los antes do jogo, no momento em que seus corpos são escravos das ferramentas e dos patrões. Mas, se decido ficar em casa, se acordo mais tarde ainda, já os encontrarei gritando e rindo, livres e dançarinos no espaço onde futuramente será o estacionamento do novo prédio.

De relance, noto que eles não usam equipamentos adequados. Escondidos pela fachada, eles trabalham na área dos fundos, sendo vistos apenas pelos moradores deste lado do meu prédio. Certamente a fiscalização deve estar ganhando alguma propina para não fiscalizar. Ainda que esta seja uma construção que, estando num bairro central, deva ter mais pressão para cumprir com os requisitos exigidos para a saúde do trabalhador, não me parece que estejam sendo tratados como mandam as leis trabalhistas. Será que uma denúncia anônima adiantaria? Será que uma denúncia de minha parte causaria demissão entre eles? Não sei. Não posso fazer uma denúncia anônima hoje. Viajo amanhã, e este assunto não é a prioridade. Mas se eu passar mais tempo olhando para eles, se decidir fotografá-los (mesmo sem autorização), poderia levar estas fotos ao Ministério do Trabalho, e eles teriam tratamento melhor ou seriam demitidos? Não sei.

Agora, outras coisas passam pela minha cabeça, misturadas com os últimos sons que eles fazem, preparando-se para ir embora, apenas dormir, para amanhã voltar ao mesmo ritual de sacrifício. Assisti ao filme “Django livre” de Tarantino. Destaco um momento do filme em que, ao invés de castrarem o protagonista, para que ele morra sangrando em no máximo sete minutos, pretendem conduzí-lo para um castigo pior: trabalhar, sem parar, quebrando pedras. Seria isso o resto dos seus dias. Quebrar pedras do nascer ao pôr do sol, sem descanso. E, se reclamasse, teria a língua cortada. Até o dia de morrer, sem descanso, sem direito à nada além de quebrar pedras para o patrão.

O caderno de auto-ajuda foi algo que conheci numa reportagem sobre alternativas para melhorar a saúde de pessoas com câncer e outras doenças crônicas. A técnica é anotar num caderno os motivos que a pessoa tem para agradecer pelas coisas boas que tem na vida. Os meus amigos jogadores, que não me conhecem, mesmo tendo me visto algumas vezes quase sem roupa (falta de costume de ter homens no ponto de visão onde antes havia apenas um terreno baldio), são também escravos deste prédio que tirou a Lua da minha janela. São escravos do trânsito, são escravos dos baixos salários e das péssimas condições de trabalho. Mas encontraram um jeito de, diariamente, resistir. E deixam de ser apenas os trabalhadores da construção civil, para serem heróis do futebol, os meus heróis, pelo menos. E isto me faz sentir prévias saudades. Mesmo quando o prédio estiver pronto, e o campo onde eles jogam for apenas um estacionamento, eu lembrarei, sempre, dos astros do futebol da hora do almoço.

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