Com que roupa você se veste para viver em outra cidade?

Por Eliana Mara Chiossi.

Já vivi em quatro cidades diferentes: São Paulo, onde nasci, Aracaju, Porto Alegre e Bahia. Quando rememoro os fatos passados em cada uma, também vejo quem eu era, no momento. E como fui me modificando a cada mudança. Quando saí de São Paulo, tudo era novo: o casamento, o amor por um homem, a possibilidade de parar de trabalhar e realizar o sonho de fazer Letras. Seis anos depois, saindo de Aracaju, no caminho do aeroporto, um filme passava na minha cabeça. Amigos, histórias compartilhadas, aventuras, risos, erros, raríssimos inimigos, aprendizagens.

Morei em Porto Alegre três anos, ainda casada, e vi os filhos crescendo junto a outras crianças nômades, filhas de geólogos, que, em geral, mudam muito de cidade. Ser de outra cidade nos tornava próximos. E formávamos uma rede solidária e generosa. De algum modo, nos encontros de domingo, ninguém era estrangeiro. E cada um tinha seus modos de viver, seu sotaque, suas manias regionais. Diferenças que trocávamos: um xingamento estranhíssimo, usado em Aracaju, como “filho do cabrunco” era trocado por uma comida típica, como o arroz com pequi, de Goiás. A festa da Aparecida, no interior de São Paulo era trocada pelo Círio de Nazaré em Belém ou pela parada gay na Avenida Paulista. Remédios caseiros, personagens bizarros, cachoeiras escondidas, vexames, arquitetura, piadas. Neste bazar solidário, uma palavra era comum a todos: saudade.

Conta uma lenda que havia um guardião na entrada de uma cidade. Cada pessoa nova que chegava o consultava para ter informações sobre a cidade. E ele, ao invés de responder, perguntava: “Como foi sua vida, na cidade de onde veio?”. Se dissessem que a outra cidade era ruim, cheia de problemas, ele dizia: “Esta cidade é ruim, cheia de problemas”. Se, ao contrário, a pessoa dissesse: “Tive uma vida boa lá. Mesmo tendo alguns problemas, guardo boas lembranças e bons amigos”. E o sábio (todos os guardiões das lendas são sábios!), então, respondia: “Você terá uma vida boa aqui e mesmo tendo alguns problemas vai ter boas lembranças para guardar e bons amigos”.

Eu mudei de cidade. Estou passando uma temporada numa cidade nova, bem diferente da outra, em que vivi por 15 anos. Há momentos em que não sei se tomei a decisão certa. Há momentos em que os problemas que encontrei na outra cidade ficam pequenos diante do medo da adaptação, diante da força que é preciso fazer para ser, outra vez, estrangeira. Na falta de resposta, posso dizer que em Salvador, apesar de alguns problemas, guardo boas lembranças e bons amigos. E sinto saudade, muita saudade. Não sei como me usar nesta cidade nova, mais fria no clima e, quem sabe, mais fria nas relações. Talvez sirva tudo que aprendi em Salvador: vestir por dentro a alegria diária, mesmo quando existem problemas. E suportar a saudade maior: da presença diária do mar.

2 Comentários

  1. Me identifiquei em vários momentos aqui, Eliana. Especialmente a parte do guardião.

  2. Paulo Ricardo Cirio Paes

    Muito bacana o texto. Curioso é que as vezes não precisamos mudar de cidade para mos sentirmos estrangeiros.

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