“Meu senhor, meu pai de santo,
meu São Jorge protetor,
defendei, com sua espada,
a travessia do nosso amor…”
Arthur Eid
Escrevo esta crônica como se fosse possível me colocar, em palavras, pelo avesso. Como se fosse possível, pelo avesso, me expor melhor para as pessoas que amo.
Amar é uma palavra curta que exige uma estrada muito comprida e acidentada para ser compreendida. Talvez amar seja coisa de se sentir, apenas. Falar do amor pouco acrescenta. E falamos do amor todo o tempo. Dizemos o nome do Amor em vão, diariamente, várias vezes ao dia.
Hoje, estou doente. Doente porque perdi um cartão de crédito. Doente porque acordei tarde e não cumpri a rotina de caminhar pela manhã. Doente porque não encontro minha agenda e dentro dela há papéis que a burocracia exige e pede, faminta. Mas a doença mesmo é o sentimento de que um dragão solta fogo nas minhas entranhas e não sou capaz de adormecê-lo.
Este dragão, vou batizá-lo como “Dragão da Mudança”. E é o dragão que mais reside em mim nos últimos tempos. É ele que vem ditando, com sua voz que é quase um grito, os gestos temerários que me fizeram sair da minha zona de conforto. É isto. Estou vivendo no desconforto. Mas desta vez, distinta de outras ocasiões, eu mesma me impus o desconforto. Eu decidi sair de casa, aos 17 anos, e tudo era desconfortável, mas aos dezessete anos o desconforto é romântico e necessário, quase prazeroso, eu diria.
Eu, como todas as pessoas, ao acordar, tomo consciência dos dragões da agenda: escovar os dentes, tomar banho, pagar contas, fazer comprar, ir ao cartório, ir ao médico, cumprir tarefas, trabalhar, conviver com pessoas, fazer ligações que não queremos fazer, ouvir as mesmas ladainhas nos atendimentos telefônicos das empresas que nos lesaram, trocar mercadorias, fazer ajuste nas roupas apertadas ou largas, limpar os sapatos, sujar a casa, limpar a casa, enfrentar doenças, tomar remédios, tomar remédios para os efeitos colaterais dos remédios. Dragões de vários tamanhos. Dragões diários.
Evocar os santos de nossa afinidade parece um delírio. Uma ilusão quase infantil de que haja super heróis a nos proteger contra o mundo. Mas na verdade a proteção de que precisamos é contra a vida. Ela seria a nossa maior doença. E só em outro reino, em que a vida seja mágica, seja outra, seria possível estar conforme. Será que isso explica nossos chamados aos santos? Será que isso explica nossos pequenos rituais e devoções? Será que isto explica porque hoje faz falta ter São Jorge montado em seu cavalo veloz e furioso, saindo por aí para fazer justiça em meu nome?
Sou pequena e hoje menor do que ontem. O tamanho da minha vida se reduz a cada dia. E todos os dias há dragões dispostos a reduzir minha fé. Fé em quê, se não tenho religião e desconfio de tantas coisas?
Hoje eu preciso do santo guerreiro. Da ilusão de que ele existe, da ilusão de que ele me ama e galopa, intrépido, em meu nome. E que traz para minha alma o escudo protetor contra os dragões. Estes pequenos monstros que moram comigo, todos os dias.
Por Eliana Mara Chiossi