Faces de Eva estreia no Festival Porto Verão Alegre

Nos dias 04 e 05 de fevereiro de 2025, a instalação artística Faces de Eva teve sua estreia em duas sessões praticamente lotadas na Sala Álvaro Moreyra, dentro do Festival Porto Verão Alegre. A performance teatro-musical vinha sendo desenvolvida de forma independente pelo grupo TMA – Teatro Musical Autoral, ao longo do ano de 2024, numa co-produção com Coletivo Catarse / Ponto de Cultura Ventre Livre e apoio da Comuna do Arvoredo.

A mulher e seu lugar de poder na sociedade patriarcal. Tão complexa quanto o tema, foi a própria montagem, um processo longo, cheio de intensidades e aprendizados que levaram o TMA a entregar uma performance riquíssima, com diversas camadas simbólicas, cenas esteticamente elaboradas, tudo confluindo para tratar da profundidade do tema. Para o público atento e sensível, é certeza de que a Eva reverbera para além do teatro, sendo lembrada no dia a dia, ao ver as notícias, a rede social, ao se enxergar diante das situações de vida.

Para entender um pouco mais sobre o que foi montar e estrear Faces de Eva, conversamos com Raul Voges, um artista multihabilidoso que assinou nada mais do que o roteiro, direção, cenografia, figurino, produção e, ainda, atuação.

Fala um pouco sobre a tua trajetória de artista e o que te motiva a continuar fazendo arte?

“Eu iniciei como bailarino e ator que gostava, também, de cantar. Você não sabe de onde vem, mas algo em você te empurra para isso. Na arte, tive ótimas escolas e ótimos mestres. Sempre fui muito disciplinado e interessado em ter acesso a todo o conhecimento possível. A disciplina me trouxe a formação como professor, e minha didática se construiu através da observação atenta ao trabalho dos professores que tive, e também das minhas práticas em sala de aula e espaços onde dirigi e coreografei. A disciplina também me trouxe um profundo respeito pelas artes, e pela forma de desenvolve-las em meus alunos.
Meus aprendizados iniciais, com Lenita Ruschel na dança, e com Sonia Pellegrino no teatro, foram dando espaço à construção da minha confiança e da minha paixão por estar em cena. Naquela época, anos 80, se falava, “O fulano fez escola”! Fazer escola, era cursar as diversas técnicas oferecidas, respondendo com dedicação e ousadia. Fazer escola era, atravessar a cidade num domingo, usando 2 transportes mais caminhada, para fazer uma aula com um profissional que estaria somente aquele dia em sua cidade.
Dos 17 aos 30 anos, estive em palco muitas vezes, passei por algumas escolas, e me identifiquei agradavelmente como professor de dança em escolas de dança, e de preparação corporal para elencos. Dancei muito, e iniciei meu percurso no teatro com grupos independentes. Trabalhei em escolas de municípios do RS, e tive uma escola de dança na cidade de São Jerônimo. Na universidade, cursei metade do curso de Educação Física, e me formei em Arquitetura. Então decidi morar em São Paulo, motivado pela arte e pela arquitetura (recém formado).
Trabalhei 3 anos como professor das Oficinas Culturais do Governo do estado de São Paulo, ministrando oficinas no interior no estado. Criei dois grupos teatrais, e fui diretor artístico de uma fundação. Fiz um pós em gestão cultural, fiz parte do conselho de patrimonio histórico, e desenvolvi um projeto arquitetônico de ampliação de um museu de arqueologia, em um prédio tombado. Foram 3 anos bem intensos de vivências e aprendizagem constantes.
Voltei para POA quando meu pai adoeceu. Fui buscar os colegas de outrora e atualizar-me do que estavam fazendo. Fiz aulas com um e outro, dancei com outros em suas cias, mas foi novamente como professor de escola de dança, que pude prover minha vida. Antes de ir pra Sampa, havia descoberto o trabalho de uma companhia de Porto Alegre, que me encantou, a Cia Terpsi. Desejei trabalhar com sua coreografa e diretora, Carlota Albuquerque. Passados 3 anos de retorno à POA, soube que Carlota estava ministrando aulas para uma turma mista, e me apresentei à ela como aluno. Iniciou-se aí, uma relação de afeto artístico e de experiência dramatúrgica com meu corpo, minha voz, meu canto, que definiram meu caminho como intérprete criador. Havia encontrado um “deciframento” em meu ser artístico, que me transformou o ser total. Expandindo meus trabalhos em cena, passei a participar de elencos de musicais, e conheci minha parceira de Actemus (Academia de Teatro Musical), a Cintia Ferrer. Foram alguns anos de construção de uma linguagem única para o teatro musical na cidade. E aquele meu universo da infância, com meu avô escutando óperas, meu pai me comprando livros de romances e histórias, dramas e suspenses, somados aos filmes da Atlândida na TV, ressurgiu dentro de mim, trazendo ao meu trabalho um grande entusiasmo. Por estar em cena como elenco de musical, pude construir esse novo contexto pedagógico aos alunos que estavam ávidos como eu, outrora na juventude.
Hoje, o TMA – Teatro Musical Autoral, o coletivo que criei e dirijo, é minha oferta ao mundo. É minha construção de vida, que pode ser sentida, questionada, entendida ou só apreciada. Gosto da crítica, da ironia, e gosto de mudar as fisionomias e gestos de quem assite, e também de mover os olhos, o corpo na cadeira, e provocar o assobio, o dedo que tamborila na perna e o texto que fica gravado, repetindo em uma mente afetada por meu trabalho”.

O TMA (Teatro Musical Autoral) é um grupo que se constitui e se reconstitui a cada trabalho. Pode falar um pouco sobre isso e como este grupo do Faces de Eva foi montado?

Meus trabalhos são sempre montados com elenco convidado, mas não tenho uma ordem para isso. Enquanto professor de arte, tenho a facilidade de acesso a diversos talentos, de artistas com os quais convivo em sala de aula, em studios. Nestes 40 anos de professor, o universo criador trouxe uma comunhão de idéias com alguns, e os convites surgem deste lugar. Encontrar em cada artista, as possibilidades, e lincar suas disponibilidades com um tema proposto. Buscar um teatro autoral, com pesquisa e estudo, é o princípio de meus trabalhos. Não penso inventar algo que ainda não exista, mas ver como a soma de todas as coisas, pode estar próxima de trazer prazer ao intérprete e ao espectador. Acredito que cada corpo, como um universo único, poderá desenvolver em diferentes níveis, seu movimento, sua dança, sua voz, seu canto, seu texto, e também seu espaço/arquitetura.

Divulgação 2025 – Guilherme Fraga, Fabíola Barreto, Gabi Walenciuk, Ighor Pozzer, Marisa Rotenberg (Preparação vocal), Cristine Patane, Odila Athayde Bohrer e Raul Voges


O TMA surgiu de um grupo de artistas, meus alunos, que desejavam trabalhar para o palco. Esta ideia de desenvolver um trabalho de pesquisa e estudo para criação autoral em teatro musical, aflorou com este convite. Estes 5 alunos, foram replicando a ideia, e resultamos com 16 pessoas. No TMA temos um sistema, onde calculamos o que temos e o que precisamos ter. O número de integrantes, define também o investimento financeiro, e o processo de pesquisa, estabelece um provável estreia. Os artistas colaboram com um valor, calculado em uma média comum à todos. Metade deste montante, pagam o trabalho do diretor e ensaios. A outra metade, é cumulativa, ou seja, será usada na pré-produção. Neste formato, estreamos a 1ª versão do “Faces de Eva” instalação. Mas ainda não adotamos este sistema como oficial. Vamos nos adaptando, e o trabalho se desenvolve com parcerias com pessoas e instituições. O trabalho desenvolvido e apoiado por um ponto de cultura, como o que agora contamos, o Ventre Livre, e principalmente a orientação e apoio do Coletivo Catarse, são muito importantes para nossa sobrevivência.
A formação atual do TMA, tem apenas 2 integrantes da 1ª formação de 2019. Os outros 4, conheço-os de outros trabalhos com outras montagens e grupos, e os convidei pessoal e individualmente, partindo da minha decisão de remontar o “Faces de Eva” adaptando parte das cenas para o palco.

O Faces de Eva é uma instalação teatro musical. O que é isso e o que a difere de um espetáculo teatral?

O Faces de Eva estreou em 2019, como uma instalação de teatro musical, nomenclatura definida por mim, para um trabalho teatral que se desenvolve em espaço múltiplo, dividido em setores, e que possibilitam e dirigem o espectador a observar as cenas de diferentes ângulos.


A variação de distâncias entre o espectador e o ator, a distância dos objetos, dos sons, dos aromas, traz visões e sensações que afetam o público de diversas formas.
Posso dizer que estamos ainda em um primeiro nível desta proposta, onde o espetáculo se move e o espectador se desloca, acontecendo isto apenas durante o espetáculo. Em um 2º nível, a proposta da instalação, é estar permanente e exposta, para o olhar da plateia, fora do momento “espetáculo”. A “instalação” tem seus momentos sem a dinâmica dos movimentos e ações e sons dos artistas, e é modificada com a intervenção destes, podendo deixar ambientes diferentes nos setores após cada apresentação de uma temporada. Estes espaços/setores se modificam de uma apresentação à outra. Um 3º nível, seria explorar as possibilidades de “provocações” ao público, que permitissem ao espectador escolher o que ver, como ver, e tbm permitir, participar. Tenho 2 motivações para pensar e sentir o teatro musical desta forma; uma delas, é a arquitetura, que me pede para enxergar diversos possíveis “espaços cênicos”, como elementos do cotidiano, e a serviço do humano/ser. A cenografia que proponho, vai trazer também essas possibilidades, que é onde entra a outra motivação. O trabalho precioso que desenvolvi enquanto integrante da Terpsi-Teatro de Dança, com Carlota Albuquerque, trouxe ao meu corpo, possibilidades infinitas de atuar por todos os espaços, com todos os calçados, dançar por todas as superfícies e a familiaridade do corpo com todo e qualquer objeto que possa acompanhar a cena. Não há nada na cena, que seja apenas “cena”, tudo foi explorado, pensado modificado, e até mesmo, retirado de cena, para ficar o seu “vazio”.

Como se deu esse processo de montagem que culminou com sua estreia no Festival Porto Verão Alegre? Quais as potencialidades e desafios de uma montagem independente frente ao cenário cultural atual?

Estamos vivendo de esperanças talvez, porque, quando jorra a grana na torneira federal, a sequência de “barragens” continua a mesma, e um CPF que esteve por anos, unido aos coletivos, não vai pontuar o suficiente e apenas pela sua ótima proposta de trabalho com o então “seu” grupo. E por isso seguimos trabalhando com artistas que possuem 2 profissões, e podem transferir dinheiro, tempo e afeto. Fizemos este espetáculo com menos de 6 mil reais, e ele está aí! Mas não é esta a sua maior potência. E não me pergunte por quê, mas seguimos tentando.

Na tua visão, qual seria o contexto ideal para um trabalhador da cultura, como tu, trabalhar com dignidade?

Trabalhar com dignidade é ainda uma vontade, mas não mais um objetivo perseguido nas 24 horas. Nos acostumamos a fazer sempre mais do que o espaço nos permite, mais do que o nosso dinheiro compra, e mais do que o nosso corpo aguenta. E você não vê um entusiasmo na geração jovem que se junta a nós. Existem os trabalhos e coletivos que prosperam, mas seguem sendo a ponta estreita e alta da pirâmide social/artística. De cima até a base, continuamos todos fazendo teatro, e o que diferencia, é a dose do sofrer que se soma ao prazer de viver (de) sua arte. Os projetos de pontos de cultura, que abraçam diversos coletivos e linguagens da arte, são um oásis, mas nem todos chegam até ele.


Sinopse:
“Faces de Eva” é uma instalação de teatro musical, adaptada para palco, pelo TMA Criação&Montagem-Teatro Musical Autoral. Esta montagem traz canções, diálogos e coreografias, inspirados na vida de Evita Peron, criados a partir dos diversos caminhos de mulheres que exercem o poder, em suas épocas, explorando seus talentos e convicções. São estas mulheres “Evas”, que surpreendem a todo o instante, conquistando diferentes espaços, e com isto, reescrevendo histórias, até então escritas por um olhar masculino e machista. O TMA é um coletivo que trabalha com pesquisa e formação, para uma linguagem autoral, entendendo as diversas possibilidades do olhar crítico e artístico sobre o cotidiano, utilizando, para isso, fatos históricos e registros não oficiais.

Ficha técnica:

Montagem: TMA PRODUÇÕES (@tmacriacaoemontagem)
Co-produção: Coletivo Catarse / Ponto de Cultura Ventre Livre (@coletivoctarase)
Apoio: Comuna do Arvoredo (@comuna_do_arvoredo)
Direção, roteiro, cenografia, figurino e produção: Raul Voges (@raulvoges)
Assistência de Direção e produção: Têmis Nicolaidis (@temis.nicolaidis)
Preparação vocal: Marisa Rotenberg (@marisarotenberg1)
Operação de som: Philippe Branco, Gustavo Türck e Vigo Cigolin
Iluminação: Vigo Cigolin
Pesquisa: Elenco TMA Coletivo e Escola

Elenco:
Cristine Patane (@cristinepatane)
Fabíola Barreto (fabirbarreto)
Gabi Walenciuk (@gabiwalenciuk)
Guilherme Fraga (guillermefraga)
Ighor Pozzer (@ighorpozzer)
Raul Voges (@raulvoges)
Odila Athayde Bohrer (@odilabohrer)

2 Comentários

  1. SuperShow!

  2. Que lindeza!!! Participei da montagem em 2019, é uma obra que vem sendo lapidada e fica cada vez melhor

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