"Fomos jogadas num projeto de assentamento e esquecidas"

Carta de denúncia das famílias do assentamento Madre Terra, em São Gabriel/RS, e do pedido de solidariedade que fazem aos movimentos sociais, sindicatos, entidades de base, e aos apoiadores da luta pela terra:

Assentamento Madre Terra, São Gabriel, RS.

Quatro anos sem água, luz, estrada, educação, saúde, habitação…

Março/abril de 2013.

Nós, as famílias do assentamento Madre Terra, regional de São Gabriel do MST/RS, viemos por meio deste documento nos manifestar sobre a situação de extrema precariedade e abandono que estamos submetidas há quase quatro anos. Tendo presente que não somos um caso isolado, mas sim produto de uma política nacional de favorecimento ao agronegócio em detrimento aos direitos humanos, à biodiversidade e a todos os modos de vida e culturas tradicionais.

Depois de resistirmos a longos períodos acampadas e termos feito parte de históricas jornadas de luta pela terra no RS, como as ocupações da Southall em São Gabriel, e da fazenda Guerra em Coqueiros do Sul. Depois de termos lutado contra toda a brutalidade do assassino governo Yeda associado ao agronegócio, e de estarmos juntos e na linha de frente em inúmeras outras jornadas e lutas de trabalhadores no campo e na cidade durante quase dez anos, nós, as oitenta e sete famílias assentadas em julho de 2009 vivemos, apesar de “assentadas”, enfrentando uma série de dificuldades que partem do descaso do governo federal e de seus apoiadores em realizar uma reforma agrária que realmente ofereça as condições para nossas famílias sobreviverem do próprio trabalho e com dignidade no campo.

Fomos jogadas num projeto de assentamento a 80 km da cidade, sem nenhuma estrutura, sem água, sem luz, sem nenhum auxílio médico, sem estradas, e aqui fomos esquecidas. Dependemos por longo período da humilhante e degradante cesta básica do INCRA que, por vezes, conteve até leite em pó podre, para sustentarmos nossos filhos.

Auxilio médico-hospitalar dentro do assentamento nunca soubemos o que é isso. Não existe nenhum tipo de acompanhamento nesse sentido e transporte em casos de urgência só a solidariedade interna pode resolver. Porém, num temporal de dezembro passado, um companheiro atingido na cabeça por uma tábua esperou sangrando por 7hs seguidas para que, levado jorrando sangue na carroceria de uma camionete, pudesse chegar próximo a uma ambulância do SAMU. Este companheiro só saiu do coma em março e, mesmo perdendo parte dos movimentos, teve alta voltando ao assentamento onde através de um mutirão foi construído, enfim, seu primeiro galpão de madeira. Foi por esta madeira, por uma destas tábuas que foi atingido no temporal de dezembro, pois estas tábuas demoraram mais de 3 anos para chegarem e, escassas como são, talvez não darão para o assoalho. Sofrerá assim esse companheiro e sua família como todas as outras mais um rigoroso inverno pampiano sem condições mínimas de moradia.

Sem água encanada temos que torcer para não parar de chover. Na seca do ano passado, tivemos que cavar buracos nos campos para podermos matar a sede de nossas famílias, ou então procurar a longas distâncias sangas e barragens, compartilhando da mesma água com todos os tipos de animais. Os funcionários do INCRA, que não aparecem de forma frequente porque são pouquíssimos para atender toda a região, simplesmente tiveram que assistir a isso sem recursos para mudar as coisas.

Em relação à educação, depois de muita promessa e enrolação do Governo Estadual e Municipal, sem escola e sem estradas internas, nossas crianças da primeira à oitava série chegam a ter que acordar às 3:30h da manhã para pegar um ônibus caindo aos pedaços às 6:00h, na área central do assentamento, e viajar mais duas horas num percurso de quase 30 km para chegar à escola mais próxima. A dureza é tanta que as aulas são em turno integral e a cada dois dias, quando não chove. Nesse contexto de precariedade total, criam-se todas as condições para que nenhum jovem permaneça no campo.

Sem as estradas internas, também fica inviabilizada a produção, pois é impossível transportar cargas, incluindo o leite, que é objetivo da maioria dos assentados produzirem aqui, mas que só fica em sonho porque para piorar, a energia elétrica fundamental para essa linha de produção existe somente em projetos que nunca saem do papel ou em discursos de um Luz para Todos, que no campo não chega a “todos”. Ainda que tivéssemos as estradas e a energia indispensáveis, com quatro anos de assentamento ainda não acessamos nem um terço dos minguados créditos que deveríamos receber para minimamente investir na produção.

Diante disso tudo, temos a plena certeza que para o agronegócio, para o latifúndio e para todos os peixes grandes da agricultura isso não funciona assim, pois somente em 2012 o Governo Federal destinou aproximadamente 100 bilhões de reais para empresários e latifundiários comprarem máquinas, sementes transgênicas e venenos de empresas multinacionais e, assim, seguir poluindo e concentrando a terra. Sabemos que a situação desumana em que vivemos também é fruto de uma estratégia que há tempos abandonou o enfrentamento, a pressão, e passou a privilegiar as lutas de gabinete, deixando de lado a organização de base e apostando todas as fichas nas estruturas de poder. Uma estratégia que conseguiu entrar em território inimigo, mas que pela dinâmica interna desse tipo de acionar, logo passou a confundir-se com o inimigo ajudando-o a gerir a miséria em boa parte das áreas de reforma agrária.

É por tudo isso que resolvemos transformar nossa indignação em luta e organização. E, para isso, pedir a solidariedade aos que lutam, militância, outros movimentos sociais, sindicatos, entidades de base, e aos apoiadores da luta pela Terra contra o agronegócio, para arrancarmos nossas conquistas e mostrar para os oprimidos e explorados que nossos direitos só a LUTA faz valer. Pois, se antigamente o Estado usou cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo, métodos de tortura, balas de borracha e de estanho para nos desmobilizar, hoje ele usa métodos mais sutis, mas não menos eficazes como o abandono, a burocracia, o engessamento, a cooptação de dirigentes e o isolamento. E é justamente para sair dessa situação que procuramos aos que lutam, pois, sabemos que é só entre esses que encontraremos companheiros.

Coordenação dos grupos de famílias do assentamento MADRE TERRA.

Grupo de Mulheres do assentamento MADRE TERRA.

Coletivo de Juventude do assentamento MADRE TERRA.

 

O Coletivo Catarse, em agosto de 2012, com financiamento da Agência Pública, produziu uma série de reportagens sobre a situação de extrema precariedade em que vivem os assentados em São Gabriel/RS:

LEIA MAIS SOBRE A SITUAÇÃO DOS ASSENTAMENTOS EM SÃO GABRIEL:

Parte 01: No coração do latifúndio, uma estaca quebrada.

Parte 02: Assentados no fim do mundo.

Parte 03: Anos na briga por reforma agrária.

Infográfico: O prometido e o (des)cumprido.

 

 

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