A borboleta é monita

Por Eliana Mara Chiossi.

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A menina da foto,  acho que se chama Sônia ou talvez Mônica. Eram tantos alunos já descontrolados, sem a presença da professora titular. A professora substituta parecia assustada e preferiu ficar assistindo. Estavam agitados. Com expressões de que algo poderia explodir a qualquer momento. Bastava olhar para os olhos da  professora substituta. Mas estavam sentados, ainda em posição convencional e isso garantia uma certa ordem.

Sem saber a faixa etária da turma, de 7 a 10 anos mais ou menos. Fui convidada para ministrar a oficina “Desencaixotando a poesia”, que era uma derivação da primeira, realizada na Casa de Cultura Mario Quintana, por ocasião do evento Ler Cultura no aniversário de 107 anos do poeta, realizado pela Casa e pela FestiPoa Literária. Nesta, intitulada, “Desencaixotando Mario”, o enfoque era trabalhar com participantes que se inscreviam por livre e espontânea vontade, eram adultos e tinham genuíno interesse em entender e colocar em prática esta operação ainda não conhecida de “desencaixotar” um poeta.

Agora, estávamos na Escola Vila Lobos, na Lomba do Pinheiro, participando da Feira do Livro, em nome da mesma Festipoa,  que tem  assumido  uma postura renovada de trabalhar e se envolver durante todo o ano em ações de práticas alternativas de fomento à leitura. Chegar perto dos leitores, oferecer caminhos, propor outros caminhos, sonhar juntos. Minha oficina tinha como base mostrar que é possível desbloquear os alunos e permitir que ousem escrever poemas usando técnicas não convencionais, que comecem por não tratar nem a poesia nem o poeta como sagrados. Basicamente a operação de desencaixotar é transformar o conteúdo das poesias de um poeta no material de base para confecção de poemas com total liberdade, sem hierarquização.  A única regra é: usar apenas as palavras do poeta e nada mais. E, a partir daí, recortar o livro, recortar os poemas, e montar frases, montar expressões, montar versos, montar estrofes, montar um poema inteiro. Depois declarar a parceria do poema feito a quatro mãos com esta assinatura: Siga o Mapa: Mario Quintana; Siga o mapa: Cecilia Meireles. E por aí seguir.

A primeira edição na Casa de Cultura Mario Cultura foi um sucesso enorme, que mobilizou fortemente quem participou. Mas com o grupo de alunos da escola alguns fatores não colaboravam. Parecia que nada iria dar certo. E uma sensação de impotência tomava conta de mim.

Estranhei a faixa etária e a professora substituta com desejo de fugir. Fernando Ramos ficou comigo, na retaguarda. Mas cabia a mim dar conta do desafio. Pela experiência do meu inicio de carreira como professora de Ensino Fundamental senti que eles iriam testar minha autoridade e qualquer proposta fora do convencional seria um estopim para a sala sair completamente do controle. Mas não poderia realizar a oficina de outro jeito. Isto me fortaleceu. Respirei fundo, pensei: seja o que os deuses quiserem.

Me apresentei e pedi que eles afastassem as cadeiras para  encostá-las nas paredes para trabalharmos no círculo. Isso foi o começo de um barulhão e semigritaria. Dei poesias, adequadas à faixa etária (retiradas de livros didáticos fornecidos pela bibliotecária), cola, tesoura, cartolina, canetas hidrocor. Tentei simplificar a proposta ao máximo, e a primeira parte seria apenas compor rimas. Dei alguns exemplos, mas o que eles mais gostaram foi Eliana Banana. Riram muito em poder associar meu nome com banana, e este foi um dos momentos de empatia entre nós.

Começaram a fazer. A todo momento vinham me perguntar alguma coisa. Não conseguiam se concentrar nem trabalhar em dupla. Na verdade, como se fosse comum, batiam uns nos outros, as meninas batiam umas nas outras e nos meninos também. E, enquanto isso, juntavam palavras que haviam escrito e tentavam produzir frases para um poema ou versos ou rimas. No meio do caos e da violência, estavam fazendo rimas com palavras de outros poetas.

Sônia ou Mônica não ficou em dupla. Trabalhou sozinha e mais do que todos vinha sempre me consultar. Ela queria escrever algo sobre borboleta e não conseguia “copiar” ou “recortar” de outro texto. Me pedia ideias. Eu sempre dizia que ela podia dizer qualquer coisa e dava exemplos esdrúxulos: que a borboleta era gorda, que a borboleta sonhou que era um dragão, que a borboleta queria ter uma bolsinha vermelha. E ela foi e voltou, nesta dança, ansiosa, várias vezes.

Eu fotografei várias duplas e trios que, mesmo dando tapas uns nos outros, produziram mesmo rimas interessantes e adoraram posar juntos para a foto, segurando suas cartolinas.

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Já estava começando a arrumar o material, recebendo beijos de despedida de alguns, quando Sônia ou Mônica chegou para pedir uma foto. Eu estava ajoelhada, pegando umas canetas e me levantei. Para viver minha maior epifania. Sônia (acho que o nome dela era mesmo Sônia) me mostrou a frase mais linda de todas, e suas idas e vindas fizeram todo o sentido. Seu estágio de alfabetização era limitador para que ela brincasse com as palavras. Era um freio, era motivo de vergonha. Mas ela sabia brincar, ela queria brincar. Ela queria escrever uma história linda sobre a borboleta. Que ela soube começar muito bem:

A BORBOLETA É MONITA

Para mim, Sônia, você é linda.

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