Facebook: cartografia múltipla para o dia das mulheres

Por Eliana Mara Chiossi.

Trindade

O caldeirão reluzia. Há tempos sem utilidade. O exílio forçado de tantas irmãs e amigas. Acima do fogão, uma sequência de vidros inclassificáveis. Era preciso sentir o aroma para traduzir seus poderes. Não sei explicar o início de tudo, daquele final de tarde anunciando a tragédia. Águas reservadas por sete dias, na recolha sistemática de orvalho e asas perdidas de libélulas. A ação planejada dos ventos e a influência exata dos movimentos da lua. O choro das mulheres violentadas furava nossos ouvidos. Nossos lábios estavam selados. O caldeirão continha água e fervura insistente. Lá fora, no quintal repleto de árvores nervosas, muitos homens aguardavam. Nada prendia seus corpos. E ainda assim, não se movimentavam. A substância do medo dava contorno ao ar. No centro do pátio, ainda em transe, ela dizia palavras antigas. Deu a ordem tão esperada. Os trabalhos foram iniciados. Sobre a cabeça de cada um deles, água fervendo e rezas seculares.

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Dia 8 comemoramos o Dia Internacional das Mulheres. Alguns dias depois, as principais notícias já falavam do mistério do avião da Malaysia que desapareceu, alguns crimes nas metrópoles do país e do mundo, o seguimento da crise na Ucrânia, a morte do ator Paulo Goulart, um avião que fez um pouso de emergência após um bebê parar de respirar, além de notícias do futebol que incluem protestos contra a Copa. Este mapa constantemente modificado já apagou da lembrança a causa das mulheres, que no dia 8 de Março trouxe a visibilidade de suas lutas e necessidades ainda atuais. Ainda mais fortalecidas quanto se associam com as causas da luta contra a pedofilia, homofobia e racismo e melhores condições de salário e transporte.

O palco que deixou mais visível uma cartografia dos modos de ver a luta das mulheres e os sentidos de haver ainda este dia especial foi o Facebook, que tem sido uma rede social extremamente veloz e dinâmica para disseminar conteúdos, e opiniões e fatos. Uma das peculiaridades do Facebook é a subjetividade e liberdade de cada perfil. Deste modo, há uma horizontalidade incrível na qual se pode observar a variação de manifestações, as discussões quase familiares acerca de qualquer tema.

Meu perfil tem aproximadamente 2.000 amigos. Mantenho contato com cerca de 200 pessoas. No entanto, tenho acesso a 2.000 pessoas e posso “passear” por estes perfis a busca de opiniões e conteúdos e encontro links que me remetem a outros perfis e também a outros links e sites fora do Facebook.

Ao contrário da polarização esperada: Dia das Rosas e Bombons X Dia de Luta encontrei nuanças muito sintomáticas e promissoras. Ainda que muitas pessoas continuem insistindo em se manter no maniqueísmo das polarizações sempre ilusórias. Muitas mensagens diziam: Não me venha com rosas e bombons, eu quero respeito. Outras se juntavam a outras causas. E outras ainda ironizavam certas manipulações das mídias que propagam uma imagem da mulher como heroína obrigada a fazer e suportar uma jornada múltipla e ainda ter a obrigação de se apresentar enfeitada para o marido dentro de um modelo de casamento tradicional e de uma relação heterossexual.

O Facebook estava me deixando feliz. Algo diferente estava circulando e uma posição crítica, mesmo que variada em estilo e intensidade, estava garantida. Usando a metáfora desgastada, junto com as rosas os espinhos estavam devidamente expostos. Mais eis que a pisada na jaca apareceu, para dizer o mínimo. Só no meu humilde perfil encontrei quase 3.000 compartilhamentos (que multiplicados devem ter gerados milhões, ainda mais se somados a perfis de outras pessoas famosas ou com mais amigos do que eu) de uma notícia de com dois destaques: Sandra Annenberg na véspera do dia 08 de março fez uma homenagem às mulheres e comunicou que estaria presente num dia histórico para a mais poderosa Rede de Televisão do Brasil, quiçá da América Latina, onde trabalha, como âncora. Neste dia 8, seria permitido que duas mulheres apresentassem o Jornal Nacional. Corri para assistir ao vídeo mais compartilhado do Facebook. E tive um misto de riso com indignação. Era ao mesmo tempo ridículo e nojento. A Sandrinha, que fala todos os “rrrs” e “ssss” falou assim mesmo, perfeitinha, umas bobagens sem considerar que estava disseminando conteúdo e formação a toda uma nação. Elogiou, em resumo, o velho blábláblá conservador sobre a força das mulheres. Por serem capazes, apesar das jornadas múltiplas que realizam, de manter o sorriso, o bom humor, a beleza e o poder da sedução, de se manter em forma e manter o penteado. Acredita? Pois é. Quase vomitei, mas em respeito ao meu computador, não o fiz. No dia 08 de Março a façanha histórica da Rede nada Boba de Televisão foi juntar a Patricinha com a Sandrinha no Jornal Nacional. Então, elas puderam, sem a tutela de nenhum homem, apresentar o jornal do horário nobre. Pergunta se o conteúdo do jornal teve algum conteúdo melhorzinho sobre as mulheres e suas lutas? Não. A grande novidade para ficar na história da emissora é essa mesma: Patricinha e Sandrinha apresentaram o jornal. E acabou. Fique agora com a novela. Onde as bobagens continuam, no mesmo estilo.

Parabéns para as mulheres que não compartilharam. Para aquelas que viram e vomitaram. Para aquelas que não viram. Para aquelas que viram e desligaram a tevê. Feliz dias das mulheres que perdem a cabeça quando a faxineira não chega. Feliz dia das faxineiras que não tem dinheiro da condução para ir ao trabalho. Feliz dia das mulheres que denunciam os companheiros. Feliz dia das mulheres que estão junto com seus companheiros ajudando a construir um mundo melhor. Feliz dia das mulheres que não aceitam a jornada múltipla de trabalho e ao invés disso lutam por melhores condições de trabalho e de vida. E que não caem na lábia dos “rrsss” e “sss” bem pronunciados de quem quer nos enganar com a mesma ladainha de sempre. Feliz dia de quem se junta para lutar, cada um a seu modo, sem esperar que haja um dia especial para isso, mas que honra também os seus dias especiais.

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