Por Eliana Mara Chiossi.
Piedade
Se eu amasse Hitler, eu seria uma santa. Teria, para meu pobre ditador, colo, perdão e sopa quente. Se eu amasse Hitler, arranjaria um jeito de ser surda. E falaria com ele apenas de assuntos banais como a textura do morango e a beleza dos cristais. Para evitar pesadelos e higienizar a memória dos relatos do horror que meu amado praticava, eu iria me transformar, pouco a pouco, numa estátua, pedra dura e condensada. No dia último de ser gente, morte tantas vezes desejada, teria na expressão do meu rosto, prévio monumento, a gravação terrível da certeza de que, ainda sendo Hitler, aquele homenzinho odioso era meu filho e era humano.
Eliana Mara Chiossi
Numa semana dessas, o tema do sofrimento me perseguiu. Sem saber que estava eu dentro do tema do momento, afinal estávamos na Quaresma e seguindo a Via Crucís, que são as 14 estações do sofrimento de Cristo: Ele é condenado à morte, carrega a cruz às costas, cai pela primeira vez, encontra a sua Mãe, é ajudado por Simão Cirineu, Verônica limpa seu rosto, cai pela segunda vez, encontra as mulheres de Jerusalém, cai pela terceira vez, é despojado de suas vestes, é pregado na cruz, morre na cruz, é descido da cruz e é sepultado.
Lembro o quanto chorei quando vi na infância essa cena no cinema. E o que mais me incomodava é que ninguém libertava Jesus. Eu, enquanto criança, não entendia o motivo de todos ficarem passivos, inclusive quem estava dentro do cinema. Por que não fazíamos nada? Por que aquele homem tão bondoso, tão bonito, com o olhar tão puro, estava sofrendo, era seguido por uma multidão que não agia? A complicada equação “sofrimento alheio versus justiça” começou cedo para mim. E até hoje continua assim.
Com a pergunta colocada acima sobre a possibilidade de ser ou não possível comparar sofrimentos, logo me lembrei do verso do samba que diz: “tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”. Este é um dos versos mais lindos que conheço. Sua beleza está no fato de sua provocação. Com poucas palavras consegue dar voz ao sentimento de tanta gente. Quantas vezes não tivemos vontade de dizer aos amigos e familiares: “Por favor, parem de rir e me deixem chorar”. Ou até mesmo aos desconhecidos nas ruas: “Mas que irritante é essa sua alegria”. Não que o sentimento de inveja que nos assalta seja malvado, danoso. Na maior parte do tempo, quando não estamos bem, não queremos o mal de outras pessoas, mas temos inveja sim do bem que estão vivendo, simplesmente porque queríamos estar no lugar delas. Ou porque nos sentimos merecedores daquilo que a outra pessoa tem. A inveja faz parte do sofrimento.
Ao começar a pensar no sofrimento para escrever esta crônica, fui entrando numa floresta densa e percebi o emaranhado em que estava entrando. Sofrimento abre uma constelação de histórias, sentimentos, afetos, pensamentos, posicionamentos. Está ligado a posicionamentos políticos, religiosos e até artísticos. Pode ter relações com a saúde e com a fé ou não na existência em vida após a morte.
Moro sozinha. Semanas atrás, num domingo de tarde, chovia, e tive de fechar as janelas. Estava de um pouco triste, com saudades da família e irritada com alguma coisa indistinta. O domingo nem sempre é um dia ruim, mas com certeza não é o melhor dia para quem mora só. Ao fechar uma das janelas, prendi meu polegar e doeu bastante. A primeira reação foi dizer, gritando, uns palavrões. E, depois, sentei na cama do quarto e, bem regredida, comecei a chorar. E, chorando, comecei a soluçar. E, soluçando, comecei a chamar minha mãe. E, aí, já estava deitada, em posição fetal, quase pedindo um bico, um cobertorzinho, chorando por tudo que eu me lembrava. Sofrimentos do domingo, sofrimentos da semana que viria. Chorando pela unha que estava doendo, eu me lembrei dos sofrimentos que estavam controlados, mas que me incomodavam.
Algum desses sofrimentos era maior do que o sofrimento de um morador de rua sem teto e sem comida? Maior do que um paciente terminal lutando contra um câncer? Maior do que alguém perdendo um parente num acidente de carro? Maior do que alguém perdendo um grande amor? Certamente que não.
A minha unha prensada pela janela é uma dor pequena. O domingo que me deprime um pouco é uma dor pequena. A saudade do meu neto que mora longe é pequena. E a lista das minhas dores pode ficar maior. Se eu decido mensurar como pequenas as minhas dores, se eu tiver sensibilidade e compaixão. Ao comparar com as dores coletivas, dos grandes holocaustos de populações vulneráveis, de calamidades e catástrofes, de horrores e tragédias, a medida sempre se reajusta.
Todos sofrem. Por mais contraditório que seja, até o mais terrível psicopata sofre. Sofre menos, mas sofre. Claro que é preciso que ele sofra bem trancado. Ou que seja devidamente tratado, para não causar sofrimentos a outrem. Há o sofrimento fútil. Uma unha quebrada, minutos antes de uma festa, pode causar um drama na vida de uma mulher extremamente insensível e prepotente. E eu tenho a tendência de não dar a mínima para a unha dela nem para seu respectivo sofrimento.
Quando escrevo uma crônica, ou quando escolho um tema, acontece muito de apenas tocar a sua superfície e de não chegar nem de perto naquilo que gostaria de dizer. Ou de perceber que entrei num tema que tem tanto para ser dito, ainda, que mais me desafia do que me acalma. Ou seja, sou uma vítima do tema. O tema me dá uma rasteira. Claro que não tem régua para o sofrimento. Mentira. Tem sim. Há prioridades. Há urgências. Para isso usamos o termo: vulnerável. Para isso, num hospital, existe o setor de emergência. Há feridas de emergência. Há feridas que pedem ajuda. Depois que passamos por essas, podemos chegar aos sofrimentos menos visíveis e urgentes. E, nem por isso, menos dolorosos. Ter olhar compassivo para o sofrimento alheio só pode ser verdade se eu conseguir respeitar a minha dor. Não para ficar cega diante dela, como se fosse a maior dor do mundo, tampouco para desprezá-la como se não fosse dor. Todos nós temos estações dolorosas. O grande presente é ter, entre uma estação e outra, a alegria nova da paisagem.