Histórias da minha esquina II

O BOPE é o sujeito que mora aqui ao lado. O BOPE tem família, tem opiniões sobre política, sobre a cidade e sobre o mundo. O BOPE critica a mídia que manda aqui no pedaço, acha a política do Brasil uma “palhaçada”, mesmo sem saber o que palhaçada quer dizer. O BOPE acha a ditadura militar uma coisa boa, pode crer que sim, acha de verdade. O trabalho do BOPE é vigiar o CINE AVENIDA. O BOPE carrega um distintivo, anda à paisana e um 38 na cintura. O BOPE é o xerife aqui da redondeza e como xerife: “faz cumprir a lei”. O BOPE toma chimarrão com os porteiros do meu prédio. O BOPE sabe que sou arte educadora e produtora cultural, o BOPE “leu no jornal”.

De duas semanas para cá, o BOPE me pára na porta do meu prédio e me conta uma história, eu, como boa aprendiz da comunicação não violenta: escuto. Às vezes tenho vontade de vomitar. Às vezes ele pergunta a minha opinião sobre o tema e ele mesmo responde: “Você que eu sei que é aí das artes e dos direitos humanos, o que acha disso, pobre criança?”. O BOPE diz eu poderia ser a filha dele, cruzcredo! O BOPE me olha e pergunta: “Por que vc não confia em mim? Vejo nos seus olhos.” Eu digo três palavras apenas: “Você é policial, BOPE.”

Hoje voltando para casa, o BOPE me parou novamente e me disse que receberam ordens de recolher todos os moradores de rua, da rua. O BOPE me contou que havia um morador de rua dormindo com muitos sacos na frente do Cine Avenida. O BOPE o abordou e disse: “levanta agora daí!”. O BOPE me disse que o morador teve a “ousadia” de dizer para ele o seguinte: ” você não tem o direito de falar assim comigo”. O BOPE disse que o tirou aos tapas da frente do local. O BOPE me disse, depois de contar isso, que “essa gente não fala a língua dele, o português”. O BOPE perguntou a minha opinião sobre o tema e me escutou, ficou calado por longo tempo, me escutando, depois eu dei boa noite e subi. Eu disse o seguinte ao BOPE:

“BOPE, esse ser humano que não fala sua língua e que você tirou aos tapas dali da frente, não volta para casa para esticar as pernas numa cama quente. Porque ele não tem uma cama, não toma banho, não cozinha, não lava roupa, não bebe água da piá de noite, porque a casa dele é engraçada: não tem teto, não tem nada. Esse ser humano BOPE, com mesmos direitos que você e eu BOPE, talvez não trabalhe. (No mesmo instante passa um outro morador com um carrinho cheio de papelão e latinhas, abre o contêiner. Faço uma observação: ‘olha ali BOPE, aquele ali, por exemplo, está trabalhando.’) Esse ser humano sem trabalho que você tirou aos berros e tapas não tem trabalho, porque talvez não consiga simplesmente chegar em casa para se limpar e se mostrar higienicamente apresentável em algum trabalho BOPE. Você toma banho, come, dorme numa cama, não é BOPE? A hora que você quer, não é BOPE? Eu também. Pois bem BOPE, vocês recolhem e levam eles para aonde BOPE? Me responde: “Para o albergue”. Sabe como é no albergue, BOPE? Eu sei, BOPE, porque eu leio histórias dessa gente que não fala a sua língua. Você sabia que essa gente que não trabalha e não fala sua língua, escreve um jornal, BOPE? É sério. Há um jornal na cidade de Porto Alegre com as histórias contadas por eles mesmos. Pois no albergue você tem hora para comer, para dormir e para ir embora, não importando o frio que faz às 5h30min da manhã, sabia BOPE? E não importa se você não tem trabalho, você só pode voltar no final da tarde, BOPE. Não te empoderam de nenhum saber e não te ensinam a fazer nada, mas você não pode voltar antes BOPE. Você sabia que em um albergue não cabe todo mundo, né, BOPE? Nem todos dormem aqui na frente do CINE AVENIDA porque gostam de passar mais frio. Sabe o que acho da sua abordagem, BOPE? E você poderia me prender por desacato à autoridade: Acho um lixo. Acho desrespeitosa, acho uma repetição do mais do mesmo, acho uma violência, BOPE, acho que você devia ser preso por isso BOPE. BOPE me olha e ri de canto de boca. Eu o olho sério e digo: Não tem graça BOPE. Acho que você deveria trocar de lugar com ele BOPE, por uma noite, aliás nessa noite que você deu umas bofetadas nele. Sabe BOPE, sabe o que é direitos iguais, igualdade, BOPE? É isso que estou fazendo com você agora. Te olhando no olho e te abordando sobre a sua condição BOPE. Isso é igualdade, BOPE. Se te esfregasse na cara minha carteira de produtora cultural e te desse umas bofetadas, BOPE, não seria igualdade. Ele ficou me olhando. Eu perguntei: Soube a minha opinião BOPE? Ele respondeu com a cabeça que sim e olhos baixos. Eu fiz a mesma coisa que ele faz comigo: perguntei e respondi: Posso dormir BOPE sem levar umas bofetadas? Vou dormir na minha cama quente. Boa noite, BOPE.”

por Amelie Sabuc, outono/2014.

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