Zona Sul de Porto Alegre para quem?

por Amigos da Terra e Econsciência

Muitas coisas passam despercebidas no processo de expansão da nossa cidade. Uma dessas coisas é a não muito recente exaltação da zona sul de Porto Alegre como sendo um paraíso esquecido em meio à selva de pedras. Somos levados a crer estar deixando escapar nossa “qualidade de vida” por estarmos vivendo no núcleo do caos, em meio a uma rotina estressante, cinza, poluída, superlotada e mecanizada. Ao mesmo tempo, somos persuadidos que logo ali depois dos belos morros do nosso município existe um Éden, uma pílula de vida ao alcance das nossas mãos.

Dizem que cada escolha é uma renúncia. Mas com a região sul Porto Alegre seria diferente. Esse paraíso permitiria termos ao mesmo tempo uma vida bucólica sem renunciarmos nossas relações citadinas. Em outras palavras, uma vida perfeita. Infelizmente, Freud já sentenciou que só podemos ter prazer diante do contraste, ou seja, a almejada perfeição e felicidade que parece estar logo ali, sempre revela novas contradições quando saímos da fantasia e finalmente pousamos sobre a realidade. E é dessa realidade que queremos falar agora.

Tivemos a curiosidade de conhecer como a VENDA da ilusão de perfeição e felicidade duradoura transformou a antiga zona rural de Porto Alegre no mais assediado alvo da especulação imobiliária da cidade. Com uma equipe formada por três organizações (Amigos da Terra Brasil, Coletivo Catarse e Instituto Econsciência, com o financiamento do Centro de Apoio Sócio-ambiental) fomos escutar das pessoas que viveram toda a sua vida na ZONA RURAL de Porto Alegre o que elas perceberam e sofreram com os impactos advindos da transformação daquela região em um apêndice “TUDO DE BOM” da cidade. Fizemos uma semana de imersão na região: mais de 20 horas de gravação, muitos relatos, imagens, entrevistas e denúncias. Até o lançamento do vídeo-documentário, que ocorrerá na primavera, iremos divulgar prévias dentre os principais temas abordados: o avanço da especulação imobiliária na região; os principais interesses e impactos desencadeados pela alteração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre que transformou a, até então, zona rural em rururbana; a potencialização do processo de urbanização precoce da região amparada na torrente de violações de direitos e regras trazida pela Copa de Mundo de 2014; a manutenção de uma cultura higienista na cidade que desloca para as margens e periferias sempre mais longínquas a população mais vulnerável; os desequilíbrios ambientais decorrentes da implementação de grandes empreendimentos em uma região que protege a maior parte da diversidade biológica da cidade; a transformação estrutural, social, cultural e econômica da região que poderá comprometer não só a estabilidade da comunidade local, mas de toda a população de Porto Alegre que reconhece a indissociável complementaridade dos contextos rural-urbano; e muitos outros.

O contexto

Porto Alegre conta com um terço de suas áreas com características naturais e rurais. Além disso, o município é o segundo maior abastecedor da CEASA-RS dentre todos do estado gaúcho. A região situada ao sul da cidade funciona como o cinturão verde da cidade, ou seja, como um território ocupado predominantemente por parques, chácaras, reservas ambientais, jardins, pomares. É o cinturão verde, por exemplo, que resguarda as nascentes de água potável que abastecem toda a população; também é nesse local que ocorre a recuperação atmosférica do ar poluído e há a conservação da biodiversidade da cidade.

Ao contrário de uma visão “anti-progressista”, a crítica à expansão da zona urbana em direção à antiga zona rural de Porto Alegre traz discussões fundamentais ao debate público acerca do modelo de cidade e desenvolvimento. Estima-se que Porto Alegre sofra um déficit habitacional em torno de 38 mil habitações (IBGE, 2010). Ao mesmo tempo, a capital foi a que menos cresceu em 10 anos, apenas 3,6%, também segundo dados do IBGE de 2010. Com base nesses dados, verifica-se que a expansão das residências sobre a região sul não se sustenta a partir de uma necessidade real da população, uma vez que o déficit habitacional concentra-se, sobretudo, na camada mais pobre, a qual, ao ser deslocada mais de 30 Km do centro da cidade, sofreria com a ausência completa de infraestrutura (saneamente básico, iluminação, vias, transporte, hospitais, postos de saúde, escolas, creches e postos de trabalho) daquela região. Além disso, um modelo de planejamento adequado para as cidades prevê que os locais dedicados à habitação se deem prioritariamente em áreas de ocupação intensa, no caso de Porto Alegre sobre as áreas próximas ao centro, deixando as áreas de ocupação rarefeita para atividades tais como a de produção agroecológica, o que é feito na região sul – aliás é de lá que vem a maioria dos produtos que abastecem as feirinhas agroecológicas do centro da cidade. Era exatamente esse o modelo da cidade que existia até a alteração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre em 1999. Hoje se verifica os primeiros impactos diretos dessa alteração: uma vez que a população pouco cresce, as novas habitações apenas promovem uma migração interna, deixando milhares de imóveis desocupados, além de grandes vazios urbanos no centro da cidade; um grande aumento de fluxo na região sul, com a ampliação de vias que dão prioridade para veículos individuais em detrimento do transporte público, entre outros; Inclusive as áreas caracterizadas como de interesse social na região – destinadas às famílias removidas pelos impactos gerados pelas obras da Copa do Mundo – são colocadas em uma região absolutamente despreparada para tal contingente de pessoas, as quais deverão disputar com a população existente os parcos recursos do local.

Quem ganha com esse jogo? A especulação imobiliária. A cidade como um todo só tem a perder, já perdeu muito e continuará a perder se não forem tomadas iniciativas que coloquem o bem comum à frente dos interesses particulares, através da recuperação do poder público municipal como agente articulador e propositivo do desenho da cidade, obedecendo aos projetos construídos pelo interesse popular, não a partir dos acordos e diretrizes impostas pelas empreiteiras e financiadores de campanha.

Essa é uma parte da problematização que o vídeo-documentário “Zona Sul: Tudo de bom pra quem?” pretende apresentar. Em breve.

Um comentário

  1. Tenho 30 anos de idade e todos eles vividos na zona sul de Porto Alegre. É muito triste ver o bairro Belém Velho, por exemplo, cheio de placas com anúncio de vendas de áreas. Essas áreas possuem uma bela cobertura vegetal com paisagens lidas, que logo estarão sendo desmatadas para a construção de condomínios, etc. O último “choque” que levei foi ao passar pela Rua João Salomoni e ver que uma espécie de túnel verde que ali existia foi destruído para a construção de condomínio. Segue meu apoio, se ainda houver uma chance de travar tudo isso.

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