Por Jacques Távora Alfonsin.
O jornal Zero Hora publicou na sua edição do dia 15 deste setembro um artigo de Ricardo Felizzola, sob o título “Mercado e democracia, fundamentos da cidadania”, assemelhando as operações próprias da compra e venda mercantil com o que acontece numa eleição democrática. Entre outras coisas, ele afirma o seguinte: “Na democracia, exalta-se o direito do cidadão de escolher seus eleitos, em uma discussão absolutamente pessoal e soberana.” (…) “No caso do mercado, a similaridade é enorme, pois o consumidor, de forma soberana e individual, elege sua opção pelo produto de melhor qualidade, ao custo compatível com o objetivo de consumo.”
Afora a grosseria de se assemelhar candidata/o e voto com mercadoria, a infelicidade notória dessa comparação, o quanto de alienada e distante da realidade ela se encontra, também “é enorme”. Dá chance à crítica sob muitos aspectos, mas o principal, talvez, está presente na ocultação intencional ou não, muito ao gosto da ideologia neoliberal, do fato inquestionável de não existir nada mais discriminatório, responsável pelo desumano e injusto desequilíbrio econômico existente no meio do povo do que, justamente, o poder de compra do/a consumidor/a pobre, desigualdade essa que não acontece quando ele vota.
Não se sabe como o autor do tal escrito consegue achar soberania em quem, nesse estado de carência e privação, é até excluído pelo mercado. Se houvesse soberania sobre o mercado esse é que deveria estar a serviço das pessoas, mas o que ele faz é justamente o contrário. Seus mecanismos de propaganda e aliciamento para a venda de qualquer “produto” estabelecem um preço, como o próprio autor do artigo reflete no “custo compatível com o objeto de consumo”. Ora, a maior parte das vezes, esse preço está fora de alcance do povo pobre, sem outro efeito que não o de só aguçar o seu desejo e acentuar a sua frustração. A palavra soberania, portanto, utilizada para caracterizar tanto o mercado como a democracia, acaba soando como ironia e deboche.
Se o mercado fosse fundamento da cidadania, por outro lado, Luigi Ferrajoli no seu “Derechos y garantias, la ley del más débil” editado em Madri (Trotta, 1997, p. 103) não precisaria ter-se dado à prudência de salientar a relevante diferença jurídica que pode existir entre pessoa e cidadã/o além do fato de uma determinada concepção de cidadania – com certeza a do Sr. Felizzola – poder desmentir a tão decantada tese de que só existe liberdade onde o mercado reina. Dizia aquele jurista sobre a liberdade, ainda em 1999, em trecho da sua obra que vale a pena traduzir, o seguinte:
“Para começar, os direitos de liberdade não tem nada a ver com o mercado, que pode tranquilamente prescindir deles, tal como ficou provado durante os diversos fascismos e nas diversas involuções autoritárias das democracias de nosso século. Ademais, esses direitos se encontram virtualmente cm conflito não somente com o Estado mas também com o mercado; não é possível alienar a própria liberdade pessoal, bem como não é possível vender o próprio voto.”
Residem no conflito com o mercado, assim, os principais obstáculos de acesso do povo pobre à plena cidadania. Quem o proíbe e o marginaliza na sociedade chamada civil é a sua força incivil. E é justamente o Estado, tão mal visto e condenado por gente abonada pelo mercado, mesmo com todos os seus conhecidos defeitos, que se empenha por corrigir os efeitos abusivos desse, socorrendo socialmente as vítimas que ele deixa pelo caminho do seu “crescimento”. Não deixa de chamar a atenção o fato de o tal crescimento ser sempre adjetivado como econômico, nunca como social. Se isso afeta a diminuição da liberdade alheia, e a história mostra que afeta, tudo se explica e tolera, a pretexto de que é um sacrifício necessário ao progresso, sem se questionar o impulso reprodutor da desigualdade social aí ampliado e fortalecido.
Se existe alguma semelhança, então, entre a democracia e o mercado, ela se encontra, bem ao contrário das virtudes de uma e outro exaltadas pelo Sr. Felizzola, nos vícios próprios do segundo impostos à primeira, quando o poder privado do dinheiro compra o poder público da administração do Estado. Antes das eleições, medindo o grau de subserviência das/os candidatos e barganhando financiamento de campanha a quem se mostre mais dócil. Depois das eleições, pela cobrança da conta, transformando em lei e direito, por meio das/os eleitas/os, o que não passa de seus exclusivos interesses e lucros.
Com tais credenciais e poderes de exclusão, o mercado jamais alcançará ser fundamento da democracia e, menos ainda, da cidadania. No primeiro domingo do próximo outubro todas/os as/os brasileiras/os terão a chance de provar, mais uma vez, a grande diferença existente entre o voto, universal, livre, independente de renda, classe, etnia, crença etc… demonstrando ser esse muito diferente do preço do “produto” de mercado, na linguagem do artigo publicado na ZH do dia 15. Basta dizer que aquele é gratuito, para todas/os e esse é pago, com acesso garantido apenas para quem disponha de dinheiro suficiente para alcançar o “custo compatível com o objetivo de consumo” como leciona o autor do artigo.Enquanto a possibilidade de mais democracia se faz por aquele, a possibilidade de se ampliar a exclusão social se faz por esse.
As eleições, portanto, mesmo com todas as suas limitações e problemas, em lugar da liberdade para oprimir e dominar, abrem oportunidade de se fazer valer o permanente e legítimo anseio popular pela conquista de uma efetiva justiça social para o nosso país, garantia primeira de solidariedade e paz. Por enquanto, pelo menos, isso não se constrói sem confronto, um confronto duríssimo por sinal, sendo o voto uma das formas de empoderar todas/os quantas/os não recuam diante de um desafio tão grande para se construir, sem exclusão de ninguém, como faz o mercado, tanto a democracia quanto a cidadania.