Carta Aberta ao Jornalismo Alternativo

Texto escrito e assinado por: Jessica Dachs; Julia Schwarz; Juliana Loureiro; Luísa Santos; Luna Mendes; Natascha Castro; Yamini Benites (23 de novembro)

Machismo na “mídia independente”? Sim, isso ecziste!

O feminismo hoje é pauta, as discussões nas redes sociais, as denúncias, os debates e os questionamentos frequentes demonstram o quanto as questões relativas ao lugar da mulher na sociedade vêm sendo gradualmente abordadas em espaços diversos. No entanto, sabemos que o combate ao machismo é feito no dia-a-dia, em nossas relações pessoais, familiares, de trabalho, nas ruas – naquelas situações de assédio tão banais pelas quais, nós mulheres, passamos e que nos ferem cotidianamente.

Parece redundante falar em machismo nas salas das redações dos grandes veículos de imprensa. Redundante porque o próprio resultado final do trabalho jornalístico – as matérias, reportagens, artigos – na grande parte dos casos se resume a produtos machistas, que seguem as mesmas lógicas midiáticas da propaganda abusiva. A forma como as mulheres são tratadas no jornalismo serve de exemplo evidente: enquanto fontes e personagens das matérias, aparecem ou como objetos decorativos a serem apreciados por sua beleza ou como super heroínas que conseguem conciliar uma carreira bem sucedida, a maternidade dedicada e o cuidado religioso com a saúde e a beleza. Enquanto fontes especialistas, dificilmente são ouvidas, dando-se preferência aos seus colegas homens nos comentários sobre política, economia, esporte, etc. Como repórteres, são impedidas ou desestimuladas a desenvolverem pautas investigativas, ficando com as pautas “softs”, visivelmente menos valorizadas na profissão. Como público leitor, os assuntos de seu interesse, relativos às suas vivências enquanto mulheres (como aborto, violência doméstica e obstétrica) são visivelmente relegados a segundo plano ou simplesmente marginalizados e silenciados. Fora isso, na rotina diária das redações da grande imprensa, o assédio contra mulheres ocorre a vistas grossas, e a valorização da posição autoritária dos “machos-alfas” é mantida enquanto “cultura profissional”.

imagem carta aberta ao jornalismo alternativo

(Carta publicada originalmente em Machismo Alternativo.)

Ainda assim, nós, que assinamos esta carta acreditávamos que havia outras possibilidades no jornalismo, que este poderia assumir uma postura de questionar os pré-conceitos e duvidar das verdades e certezas estabilizadas. Tínhamos a esperança de haver espaço para uma prática jornalística diferente, principalmente naqueles ambientes que se colocavam como contestadores, a exemplo das iniciativas de jornalismo alternativo e independente que pipocavam em Porto Alegre e outros lugares.

Como estudantes, procurávamos um espaço livre para poder trabalhar com o que acreditávamos da mesma forma que nossos colegas homens, e com esse intuito decidimos construir alternativas. Formamos parte de um coletivo, de uma equipe, de uma redação independente. Estivemos desde o começo trabalhando em diversas etapas da criação, formação e produção de um jornal impresso em Porto Alegre chamado Tabaré. Algumas colegas se uniram ao grupo tempos depois – artistas, designers, escritoras, fotógrafas, etc. Muitas nos deixaram com o tempo, poucas se mantiveram durante os quase quatro anos de existência do jornal. Os motivos das desistências eram diversos: outras ocupações, outros interesses, outras necessidades. Apenas uma coisa permaneceu constante durante todo o tempo: a desproporcional presença de homens e mulheres. O movimento de saída gradual das mulheres do jornal estimulou nossas inquietações – atualmente o Tabaré conta com apenas uma integrante mulher na redação.

Hoje conseguimos perceber que na via “alternativa” algumas estruturas e relações semelhantes às vivenciadas na grande mídia se mantêm. Antes, no entanto, costumávamos acreditar que em um jornal “independente” estaríamos minimamente distantes das opressões das redações dos veículos da indústria da comunicação. Formamos um projeto de relações de trabalho horizontais, de tomada de decisões em assembleias em que todos possuíam o mesmo peso de voz e voto, enfim, de ilusões igualitárias. A partir dessa experiência ficou evidente para nós que as opressões sutis são tão ou mais eficazes do que as opressões explícitas. Seria lindo se de fato mulheres e homens tivessem o mesmo peso de voz e voto em um ambiente de trabalho. No entanto, na prática, muitas vezes tivemos nossas características profissionais desacreditadas e desestimuladas nesse ambiente, fomos silenciadas em nossas reivindicações, outras tantas ridicularizadas em nossas críticas.

Quando passamos a nos reunir fora do trabalho começamos a perceber que alguns constrangimentos eram compartilhados, que alguns sentimentos eram ecoados pelas poucas mulheres que restavam na redação. Percebemos a dimensão do que ocorria quando cada uma contava sua história e de repente tínhamos uma quantidade enorme de relatos de situações que passavam despercebidas por uma vontade de acreditar naquele rótulo “alternativo”. Pensávamos, assim como sabemos que inúmeras colegas pensam, que em espaços independentes, em ambientes “livres”, em grupos de esquerda, o machismo seria pelo menos combatido por todos, seria uma preocupação de homens e mulheres. A verdade é que isso não acontece.

Por mais que muitos dos nossos colegas homens se declarassem apoiadores das causas feministas, quando eram acusados de posturas opressoras e machistas respondiam com indignação. Alguns simplesmente não reconheciam nossas críticas e muitas vezes adotavam a postura nojenta, tão conhecida por nós mulheres, do escárnio. Outros poucos se sensibilizavam, mas na frente dos outros homens dificilmente bancavam um apoio às nossas demandas e reclamações (muitas vezes fomos taxadas de “exageradas”, de “extremistas” ou de “vitimistas”). Tentamos esforçadamente discutir opressões, mas a abertura para a crítica e a autocrítica era quase nula – chegamos a escutar que os homens sabem o que é ser mulher e que portanto nossas reclamações não faziam sentido. Era cansativo ver que todo esforço, todo debate, a cada novo episódio era como se começasse do zero. Juntas, compartilhando nossas experiências, sentimos o quanto esse machismo aparente nas discussões e na falta de abertura para aceitação a críticas é apenas a superfície de um problema muito mais profundo.

É triste perceber que essa é uma característica dos meios de comunicação alternativos, a imprensa independente brasileira sempre esteve fortemente firmada sobre posicionamentos machistas. A grande referência desse estilo de jornalismo, O Pasquim, já foi acusado inúmeras vezes de machismo, principalmente pela forma como expunha as mulheres – talvez o maior exemplo seja a famosa entrevista com Betty Friedan. Os membros do Pasquim eram declaradamente antifeministas e ridicularizavam as mulheres que lutavam por seus direitos da mesma forma que ridicularizavam o governo militar.

Reconhecemos que O Pasquim era uma grande influência para nossa produção no Tabaré. E a verdade é que todas nós sentíamos nossas potencialidades diminuídas pela maioria dos homens do jornal, duvidávamos de nossas capacidades, e por vezes nos convencíamos de que eles eram melhores. Nossas pautas eram anuladas, nossas propostas sempre pareciam incoerentes e não ‘jornalísticas’ – retrospectivamente, avaliando as publicações, percebemos pautas publicadas, escritas por homens, que quando haviam sido propostas por mulheres, foram derrubadas. Sem falar nas críticas textuais, muito mais incisivas; nos conteúdos derrubados por atrasos com a justificativa de desconhecimento sobre o andamento de nossa produção; na desconfiança sobre nossos materiais. Éramos mais cobradas, precisávamos dar explicações maiores sobre pautas, matérias, textos, imagens, falhas, atrasos, fontes, modos de escrita e a mesma cobrança era feita em outras áreas, como na diagramação e na administração. A inovação deles era criativa, a nossa era anômala. Colegas elogiavam nosso ‘crescimento’ profissional – elogios que insinuavam o quão inesperado era esse crescimento e que demarcavam a nossa posição de “aprendizes” ali dentro. Éramos avaliadas inclusive pela nossa forma física. Em diferentes momentos era necessário reforçar que não estávamos ali para flertes, mas para trabalho.

Sabemos que “ser mulher” em nossa cultura é ter nossas capacidades questionadas o tempo inteiro, somos criadas como sendo o Outro (o estranho, o diferente, a emoção ao invés da razão), somos avaliadas e criticadas constantemente (em relação ao nosso corpo, à nossa capacidade intelectual, à nossa sexualidade e desejo). Essas avaliações e cobranças constantes nos fazem sentir menores, inseguras, temos que estudar e trabalhar o dobro pra conseguir “provar” que somos capazes (e mesmo assim nunca será o suficiente). Lidamos desde pequenas com certas formas dos homens se “colocarem” em relação a nós, através de assédios, do aumento do tom de voz, das risadinhas, dos olhares de desprezo, dos questionamentos sobre nossa racionalidade. Práticas muitas vezes sutis, mas que nos dizem desde cedo qual é o nosso “lugar no mundo”, sempre abaixo, atrás de alguém. Com o tempo, muitas vezes passamos a acreditar nessa “verdade”. As palavras e os gestos, quando reiterados, têm esse poder de se estabilizarem, de se tornarem “verdades”, inscrevendo-se em nossos corpos e subjetividades.

Estar no Tabaré foi sentir ainda mais essa diferença de ser localizada cultural e subjetivamente enquanto mulher e os efeitos dessa diferença. Nas nossas trocas percebemos que em nenhum outro lugar, nem em “veículos convencionais”, nos sentimos tão inseguras em relação ao nosso trabalho. Todas nós, em algum momento, nos sentimos menores do que muitos colegas homens, duvidando da nossa capacidade enquanto jornalistas, fotógrafas, artistas e designers. Todas já sentiram algum incômodo com a negação veemente de que eles eram machistas (afinal, os machistas são sempre os outros). De alguma forma, acabamos acreditando nessas falas, olhares e posturas de superioridade. Caímos na falsa ideia de que éramos mesmo menos capazes, que nosso trabalho tinha menor importância e que nossos incômodos eram “exageros”, que era “tudo coisa da nossa cabeça”.

O irônico é que estes nossos colegas não se encaixam no estereótipo do homem machista agressor de mulheres, totalmente insensível às injustiças e desigualdades que atravessam o social. Pelo contrário, são homens de esquerda, supostamente libertários, muitos inclusive afirmam que são feministas; mas, infelizmente, são homens que esqueceram que são humanos, passíveis de erros e falhas, cheios de incoerências e que carregam em si os preconceitos do seu tempo, o que os impediu de exercer um mínimo de autocrítica e de alteridade. Assim, as práticas desses colegas revelam o lado mais perverso do machismo – sua capacidade de se mascarar em atitudes que não parecem violentas ou graves, através de conversas leves, de uma falsa inexistência de hierarquia, de elogios (em relação à nossa beleza e aos nossos corpos, a como “a gente tinha crescido” graças à oportunidade de estar trabalhando ali naquele lugar, ao lado de homens tão brilhantes), sorrisos de aprovação, demonstração de interesse em nossa vida afetiva-sexual, etc. Homens aparentemente engajados, mas que infelizmente não demonstraram sensibilidade e disposição pra fazer o difícil movimento de ouvir as nossas denúncias e reclamações de machismo, de olhar pra si, pensar sobre as suas práticas e discursos.

Isso não é de maneira alguma algo exclusivo do jornal Tabaré, tampouco dos homens que ali trabalham. Queremos deixar claro que o Tabaré é MAIS UM desses ambientes ditos libertários/alternativos pelos quais nós, e tantas outras mulheres como nós, circulamos. O silenciamento e a objetificação que sofremos nesses ambientes é mais difícil de desconstruir e combater justamente por essa sutileza, por essa identificação libertária das pessoas – dos homens – que frequentam esses lugares. Não existe uma oposição escancarada, do machista contra a feminista. Existem pessoas que dizem apoiar nossas lutas, compreender nossas posições, mas que não têm nenhuma abertura pra qualquer crítica ou denúncia – ou até a sensibilidade de olhar para os lados e perceber que está cercado de mulheres que não se sentem à vontade para falar ou participar ativamente de uma discussão. Homens que não perceberam que, em um dado momento, sequer havia mulheres ali, que agora se tratava de uma conversa exclusivamente entre homens, homens que não se importam com essa “repentina” ausência de mulheres e muito menos cogitam ter qualquer responsabilidade ou implicação nesse afastamento.

O machismo está em todos os espaços sociais e em todos nós, seres simbólicos que somos, constituindo a nossa subjetividade e se fazendo presente nas nossas relações mais cotidianas. Ser de esquerda, ter tido contato com discussões sobre desigualdade de gênero, achar bonito a “liberdade sexual” feminina e defender relacionamentos abertos não te faz um homem que busca pensar e problematizar o machismo. Pertencer ao movimento feminista e ter a vida toda questionado as inúmeras injustiças que sofreu por ser mulher não te impedem de às vezes cair na armadilha de duvidar da tua capacidade, de se sentir insegura em relação a homens que estão o tempo inteiro te avaliando e duvidando de ti. O medo da rejeição e do desprezo acaba atravessando nossas existências e por isso muitas vezes nós, mulheres, silenciamos e nos acomodamos a uma posição passiva. Estar e participar da construção desses “lugares” de crítica não te faz uma pessoa “iluminada”, imune à reprodução de relações desiguais.

Queremos, portanto, com este relato coletivo fazer um convite à reflexão por parte das mulheres e homens que estão engajados nesse tipo de projeto: qual o papel das mulheres nas iniciativas independentes? Por que a discussão de gênero sempre é relegada a um papel secundário? Por que outras questões parecem ser mais “urgentes” nesses espaços e projetos “independentes”? São perguntas que nós mulheres precisamos fazer. Entendemos ser fundamental compartilhar experiências (parecidas ou diferentes) para perceber na cumplicidade dos relatos que esses espaços independentes precisam mudar. Nós, mulheres, precisamos assumir o protagonismo de iniciativas alternativas e combater toda forma de machismo, a sutil e a violenta. Contamos nossa experiência na esperança de estimular outras mulheres a problematizar esses espaços de “liberdade” que ainda não nos inclui completamente.

 

A manifestação dos homens do jornal Tabaré no facebook, em 24 de novembro:

O Tabaré acredita que o primeiro passo para evoluir é ouvir atentamente toda e qualquer crítica, especialmente quando elas vêm de grupos oprimidos. Desejamos ampliar esta discussão e, para isso, quanto mais colaboração, mais voz daquelas que sofrem na pele o machismo, melhor. Quem sabe, primordialmente, do machismo, são as mulheres.

Em 26 de novembro:

Primeiros ecos da “carta aberta ao jornalismo alternativo”

O Tabaré, enquanto mídia independente, sempre se propôs a pautar as problematizações sobre a discriminação na sociedade. Pensávamos que, com isso, cumpríamos nosso papel em nossas atividades. Mas não. Não percebemos, ao longo de mais de três anos, que reproduzíamos a mesma lógica opressora que tentávamos combater.

Mulheres que integram ou integraram o jornal publicaram, recentemente, uma carta que apontava o machismo presente na redação. Esta carta, um ato de empoderamento feminino, afetou os homem do Tabaré – assim como esperamos que tenha impactado todos que a leram. Este pronunciamento não tem caráter de resposta ou de justificativa. Tudo que o texto das integrantes explanou fala por si só.

A partir da carta, estamos trabalhando, em primeiro plano, à procura de comportamentos ou práticas machistas que adotamos ou para as quais nos omitimos. Não podemos continuar alheios ao que diz o texto e nem às nossas atitudes opressoras. A continuidade do jornal depende dessa reflexão.

Não queremos, no entanto, colocar um ponto final no assunto. A carta nos desperta questionamentos não apenas sobre feminismo, mas também sobre o racismo, a homofobia, a transfobia e outros tipos de opressão. Estamos abertos a críticas – inclusive a este pronunciamento, visto que o elaboramos ainda sem o aprendizado e a maturidade necessários e decorrentes da manifestação das integrantes do Tabaré. Aprendizado este que é o foco da equipe neste momento. A reflexão é um processo contínuo, que não acontece da noite para o dia – e que tampouco tem fim.

Institucionalmente, esta pauta sempre ficou em segundo plano, ainda que procurássemos colocá-la presente nas páginas do jornal. Contudo, a partir de agora, concentraremos esforços para tornar a questão o cerne de nossas discussões e práticas de relações de trabalho na redação.

Convidamos a todos à leitura da carta das mulheres que já integraram o Tabaré a fim de terem conhecimento de sua mobilização. Que esta carta sirva como exemplo para que este tipo de reflexão transborde para outros contextos, independentemente dos obstáculos que existam em outras relações sociais e/ou trabalhistas.

A edição #30, prestes a ser lançada, foi produzida antes dessas reflexões. Portanto, as páginas do jornal não cristalizarão as alterações institucionais que planejamos implantar no veículo. Neste momento, não há motivo para celebrações – razão pela qual adiamos a Festa de Verão do Tabaré. O objetivo do jornal é estar cada vez mais aberto a iniciativas como a daquelas que se manifestaram por meio da carta. Não nos resta nada além de pedir desculpas a todas as mulheres que já passaram pelo veículo, apesar de estarmos cientes de que isso por si só não resolve tais problemas. Para seguir evoluindo como um espaço de emancipação, é preciso muito mais.

 

 

 

 

 

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