Não há cidade boa pra se viver sem praças, parques e árvores. Sem praças e parques cuidados. Sem árvores nas ruas. Isso é quase uma condição para a saúde física e mental das pessoas. Parece fundamental, inclusive, para a própria sobrevivência das cidades. Ainda mais agora, que já estamos sob o efeito das mudanças climáticas. Se ano passado foi o mais quente de todos os tempos, este ano promete ser mais ainda. E ano que vem será pior, adverte a ciência.
Quem chega em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul, avista a cidade rodeada por lindos morros verdes de mata atlântica, mas esta natureza normalmente se mantém fora do núcleo urbano, onde a vida acontece no cotidiano. Pelo menos, está pouco presente nos espaços públicos ao ar livre. São raras as praças e, frequentemente, estão sem manutenção ou degradadas. No dia 05 de março passado foi aprovada por unanimidade na Câmara Municipal uma comissão especial para fiscalizar as praças, tamanho o descontentamento da população que vê precarizadas as escassas áreas de lazer públicas. Para agravar, não há um plano de arborização urbana na cidade.
No mesmo dia em que se instaurou a comissão especial para acompanhar o abandono das praças, foi ao ar na Rádio Armazém a primeira edição do podcast A Cidade é sua Casa, que propõe pesquisar, refletir e debater sobre a oferta e qualidade dos espaços públicos ao ar livre em Santa Maria. Já lançamos quatro episódios.
Para o professor de arquitetura e urbanismo da UFN, Francisco Queruz, além da “falta de espaços públicos, os que existem são muito limitados”. O professor, que foi entrevistado no segundo episódio, indica que parte das pessoas encontram, de certa forma, uma saída nos clubes privados, mas que essa não é uma opção para a maioria da população, que não pode pagar para ter esse acesso. Ele também critica a arborização no município, lembrando os temporais do verão que passou: “A gente não pode usar o fato de que teve um temporal, isso gerou problema na fiação elétrica e as pessoas ficaram sem luz, pra dizer que a cidade não pode ter árvore. Não pode ser essa a conta porque nos outros 360 dias do ano a árvore nos dá sombra, nos dá melhor qualidade de vida. E não é aceitável, com a quantidade de passeio público que temos em Santa Maria, que na verdade não se tenha arborização em via pública”.
Deputado estadual apresenta projeto de lei para instituir cota mínima de área verde por habitante nas cidades gaúchas
O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) protocolou em 21 de março, na Assembleia Legislativa, projeto de lei que propõe alterar o Código Estadual do Meio Ambiente para estimular a preservação ambiental e a criar novas áreas verdes urbanas. O deputado, desde o ano passado tem proposto também que o Rio Grande do Sul declare estado de emergência climática, reconhecendo a extrema gravidade da ameaça representada pelo aquecimento global. Caso instituída a declaração, envolveria a adoção de medidas para conseguir reduzir as emissões de carbono a zero num prazo determinado e exercer pressão política aos governos para que tomem consciência sobre a situação de crise ambiental.
Receitando natureza
O contato regular com a natureza em ambientes urbanos é tão importante para que a população se mantenha saudável, que a Sociedade Brasileira de Pediatria lançou em 2019 o Manual de Orientação Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes, que visa orientar e inspirar famílias, pediatras e educadores a respeito da importância do convívio de crianças e adolescentes em meio à natureza para a saúde e bem-estar.
Há bastante tempo já se sabe que a infância cada vez mais fechada entre quatro paredes acaba levando ao sedentarismo e ao sobrepeso. Mas agora, surgem também ligações com prejuízos à saúde como hiperatividade, baixa motricidade, déficit de atenção e até miopia. “As crianças precisam de sol na pele, para produzir vitamina D, de espaço para correr e brincar livremente, para desenvolver sua motricidade. Há estudos associando a falta de brincar com o aumento da prevalência de estresse tóxico e de transtornos comportamentais, como o de déficit de atenção, a hiperatividade (TDAH) e a depressão. O contato com a natureza também propicia um relaxamento e a possibilidade de desenvolver curiosidade, criatividade, autonomia. Locais amplos exercitam os olhos a enxergar longe e perto, algo que não ocorre quando se está muitas horas somente em frente a telas e espaços fechados”, relata a pediatra Evelyn Eisenstein, que ajudou a elaborar o manual.
“As crianças têm muito pouco contato com a natureza nos espaços urbanos, por questões de segurança, degradação… Muitas áreas periféricas sequer têm espaços recreativos naturais. Quanto mais tempo a criança passar ao ar livre, melhor”, relata o pediatra Daniel Becker, outro dos autores da publicação. O médico explica que os benefícios são incontáveis: “A natureza convida para a atividade física saudável, enquanto espaços fechados convidam para o sedentarismo. A criança ama a natureza quando exposta a ela. Se encanta e parte para correr, brincar, pular, explorar, descobrir. Isso é maravilhoso.” Além disso, segundo Daniel, esse contato é capaz de reduzir problemas de sono, alergias, infecções, melhora a memória e o desempenho escolar.
O emparedamento nas cidades
O cotidiano e as rotinas na cidade de trabalhos exigentes, trânsito, exposição a ambientes competitivos, desigualdades sociais, poluição sonora ou do ar, entre outros fatores da cultura ocidental moderna, acabam por gerar um ambiente propício ao desenvolvimento de depressão e outras psicopatologias. E embora essas situações possam ser mais gritantes nas metrópoles, também acontecem em cidades médias, como Santa Maria, quinta cidade mais populosa do Rio Grande do Sul.
As cidades passam por um processo de “emparedamento”, que vem do perfil das moradias. O número de apartamentos no Brasil cresceu 321% de 1984 a 2019, segundo uma pesquisa do Grupo ZAP. Em um mundo cada vez mais urbanizado, o desafio de reconectar sociedade e natureza se torna uma demanda urgente. No Brasil, o percentual da população que vivia em áreas urbanas em 1960 era de 45%, mas atualmente 85% das pessoas estão morando nas cidades. Os impactos desse distanciamento entre homem e natureza têm chamado a atenção sob vários aspectos e, embora os efeitos nocivos às crianças sejam dos mais alarmantes, afetam pessoas de todas as idades.
As áreas verdes acabam representando um refúgio de acolhimento importante para se desconectar da correria da vida urbana e do on-line, respirar ar limpo, praticar atividade física ao ar livre, contemplar a beleza de ambientes naturais. Estar em contato com a natureza proporciona paz e tranquilidade. Não à toa, as pessoas gostam de ir a parques aos finais de semana ou quando precisam espairecer. Entre tantos estudos sobre o assunto que se multiplicam pelo mundo, uma publicação na revista Nature em 2019 mostra como a presença de espaços verdes pode promover um significativo aumento na sensação de bem-estar, melhorar o humor e aliviar os sintomas de depressão, ansiedade e estresse.
Pessoas estão mais interessadas em atividades ao ar livre
No Brasil, a pesquisa “Parques e a Pandemia – Comportamentos e Expectativas”, produzida pelo Instituto Semeia, revela que estar em contato com a natureza e frequentar praças e locais ao ar livre estão entre as atividades que os brasileiros estão realizando mais do que costumavam fazer antes da pandemia. Os dados indicam que os desdobramentos da pandemia têm potencial de mudar a relação das pessoas com os parques e outras áreas verdes, abrindo oportunidades para valorização e reposicionamento do papel dos parques e áreas naturais no cotidiano da população: “A pandemia da Covid-19 lançou luz sobre um tema importante da agenda urbana: a necessidade de se pensar formas para facilitar o acesso e a implementação de praças, jardins, parques e áreas verdes nas cidades”, destaca o estudo. Também sugere que os espaços verdes sejam vistos pelos gestores públicos como essenciais para o desenvolvimento urbano e a promoção da saúde pública.
Meio ambiente saudável agora é um direito humano
Em julho de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução declarando que todas as pessoas no planeta têm direito a um meio ambiente limpo e saudável. A ONU disse que a mudança climática e a degradação ambiental são algumas das ameaças mais urgentes ao futuro da humanidade. E conclamou os 193 Estados-membros da organização a intensificarem os esforços para garantir que todos tenham acesso a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável.
Para o advogado Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, essa não é uma questão menor: “Alguns podem falar que a erradicação da miséria, da fome ou as questões de saúde vêm antes, mas a verdade é que tudo está interligado. E a gente não pode hierarquizar ou fatiar direitos. Ter acesso a um parque ou área verde, que fique próximo, garante à criança seu direito a brincar, à convivência familiar e comunitária, à saúde. Garantir isso é garantir sua integridade física, psicológica e mental. É garantir, também, seu direito à educação, porque a educação não ocorre unicamente de modo formal, em local fechado. As grandes descobertas da humanidade decorreram em grande parte da observação dos fenômenos naturais, dos processos da natureza”.
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Você também pode acessar os programas pelo canal no Spotify da Rádio Armazém, parceira do programa. A Cidade é sua Casa vai ao ar na Rádio Armazém todas às terças-feiras às 21h, com reprise aos domingos às 10h da manhã e na terça-feira seguinte às 21h. Programas novos a cada duas semanas.
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Foto em destaque na capa por Billy Valdez: Nati Castro Fernandes concede entrevista para o primeiro episódio do podcast, sobre o projeto para a construção de um parque linear na Avenida Roraima, em Santa Maria.
Foto montagem por projeto de extensão (com)VIDA, da UFN.