Rádio comunitária A Voz do Morro participa do XV ELAOPA em Santiago do Chile

Foto destacada: Antônio – Cooperativa de Trabajo Audiovisual Trashumante Nos dias 25 e 26 de janeiro, a rádio comunitária A Voz do Morro esteve em Santiago do Chile para cobrir o XV Encontro Latino-Americano de Organizações Populares Autônomas (ELAOPA). O evento reuniu mais de 400 lutadores e lutadoras sociais na Población La Bandera, na periferia da capital chilena, território marcado pela resistência e pela atuação do Movimiento Solidario Vida Digna, anfitrião do encontro. Foto: Repórter Popular Delegações de mais de 100 movimentos sociais participaram da atividade, com participantes vindos do Chile, Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai, Estados Unidos e Alemanha. Os debates abordaram temas como território e comunidade, lutas das trabalhadoras do setor público e privado, desafios do movimento estudantil, luta socioambiental e memória, cultura e agitação. Do morro à cordilheira Mais de dois mil quilômetros separam o Morro Santana — ponto mais alto da crista de morros de Porto Alegre — da Cordilheira dos Andes. E foi até lá que nosso correspondente, Vitor Ramon, aportou com seu olhar atento, representando a Rede Coral de coletivos, em uma cobertura colaborativa entre veículos parceiros como o Coletivo Catarse  e o Repórter Popular. Para custear a viagem, uma campanha solidária foi aberta. Além disso, uma ecotrilha foi organizada junto ao Preserve Morro Santana. As iniciativas somadas a apoios do canal Voz Trabalhadora, do Coletivo Catarse e de diversos apoiadores anônimos arrecadou mais de 3 mil reais. Durante a passagem por Santiago, foi possível estreitar laços com outras iniciativas de comunicação popular, como a rádio JGM, também integrante da Rede Coral (experiência que será compartilhada em breve). Mas, para além das ondas sonoras das rádios comunitárias, acompanhamos outra tradição da cultura libertária expressa, com a pintura de um mural em conjunto com os coletivos Brigada Muralista Ana Luisa (Chile), Pinte e Lute (Florianópolis) e o antigo Muralha Rubro Negra (Porto Alegre). A grande arte conjunta com a consigna “Apoio mútuo” ganhou cor nas ruas que deram origem à tradição libertária do muralismo combativo. Nos retoques finais, cada coletivo deixou sua marca na pintura, assinando a construção coletiva. No alto da Cordilheira, a Bola 8 — uma das marcas mais características do Morro Santana — foi pintada como elo simbólico entre territórios distantes, mas unidos pela solidariedade, pela luta e pela arte.   Assista o primeiro vídeo da cobertura produzido pela Voz do Morro sobre o mural pintado em Santiago: Relação histórica e combativa A relação do Morro Santana com o ELAOPA é histórica, com presença marcada desde a primeira edição do encontro, em 2003, junto ao Comitê de Resistência Popular da Zona Leste. O encontro surgiu como alternativa autônoma e combativa ao Fórum Social Mundial, com ênfase na luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), cuja votação estava prevista para o ano seguinte. Já em 11 de outubro de 2009, um mural foi pintado na Vila Estrutural, no Morro Santana, em alusão ao “Último Dia de Liberdade das Américas” — referência à invasão europeia em 1492. A ação foi um desdobramento do VII ELAOPA, realizado naquele ano em Buenos Aires, Argentina. Em fevereiro de 2010, ocorreu o VIII ELAOPA na Colonia de Vacaciones del Sindicato de Artes Graficas, próximo a Montevidéu (Uruguai). O Combate Audiovisual (uma espécie de “braço audiovisual”) da Voz do Morro produziu um documentário sobre o encontro. Em julho daquele ano, uma comissão de uma rádio comunitária uruguaia veio para Porto Alegre conhecer a experiência local, momento em que foi realizada uma transmissão simultânea na Voz do Morro junto as rádios comunitárias uruguaias Germinal e La Villa FM. Além disso, os ELAOPAS de 2019 e  2023 também tiveram coberturas audiovisuais realizadas pelos coletivos Repórter Popular e Coletivo Catarse, que contam com integrantes da rádio A Voz do Morro. 

A quem interessa o descarte da história da cidade?

As notícias divulgadas pela Matinal na semana passada me causaram indignação. Após decretar a “perda total” de um acervo de 240 mil pastas por conta das enchentes, a Prefeitura de Porto Alegre simplesmente jogou no lixo milhares de documentos relacionados a processos urbanísticos de imóveis construídos a partir de 1970. Mesmo sob questionamentos de especialistas e do Ministério Público, que alertam que o contato com a água não inviabiliza a sua recuperação, caminhões de lixo levaram embora grande parte do acervo que estava armazenado no prédio da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov). Em 2023, defendi minha dissertação de mestrado, na qual analisei o conflito territorial, entre a Retomada Kaingang Gãh Ré e uma empresa que buscava erguer um grande condomínio no local (processo também foi acompanhado pela Matinal e, é claro, pelo Coletivo Catarse). Meus amigos mais próximos lembram o quanto fiquei obcecado ao acessar o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) desse empreendimento, leitura que se mostrou tão fundamental para a pesquisa, quanto o trabalho de campo junto à comunidade. Felizmente, esse EVU estava entre os 5% de arquivos digitalizados antes das enchentes por uma empresa terceirizada. Caso contrário, poderia hoje estar se misturando ao lixo, junto com outras milhares de pastas e documentos descartados sem cerimônia. Lembro-me de como foi percorrer aquele arquivo de mais quinhentas páginas, me senti adentrando em uma “cidade de papel” ou abrindo alguma espécie de “caixa preta”. Era uma coleção de registros digitalizados, com páginas amareladas pelo tempo, planilhas manuscritas ou datilografadas, carimbos, mapas, plantas e recortes de jornais – fragmentos de uma silenciosa história do Morro Santana (e de Porto Alegre) nos últimos 40 anos. Os anexos continham termos técnicos e procedimentos burocráticos que, a princípio, desconhecia. Admito que encontrei desafios para compreendê-los, mas através deles pude refletir sobre várias idas e vindas da aprovação do condomínio, as modificações em seu formato, altura dos prédios, número de apartamentos, de vagas de garagens, dentre outros aspectos do projeto. Entre os achados no EVU, uma coleção de reportagens e pareceres que criticavam o funcionamento das pedreiras no Morro Santana e constataram o desmatamento de 27% da mata nativa da região entre 1956 e 1972. Outra descoberta: um documento de 1975 propunha a transformação de todo o Morro num Parque Natural Periférico (que jamais foi implementado). Essas informações eram completamente desconhecidas para mim, antes do contato com o documento, mesmo morando na região e pesquisando sobre a temática há alguns anos. Parte dos registros descritos por Ruwer. Imagem cedida pelo autor, a partir do EVU do empreendimento. Havia também indícios de irregularidades e inconsistências relativas ao empreendedor e ao projeto urbanístico. Dentre elas, a descoberta de que o terreno estava hipotecado ao Banco Central por mais de 30 anos por conta de dívidas do proprietário. Além disso, o projeto havia sido aprovado mesmo com a argumentação contrária de diversos conselheiros do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA). Aliás, uma descoberta na época repercutiu bastante nas redes sociais: uma pequena rasura de corretivo tinha alterado os limites de construção do terreno, permitindo a expansão da malha urbana sobre uma antiga área de preservação ambiental. Esse EVU foi primordial para embasar denúncias, reportagens e estudos que auxiliaram na tanto na defesa jurídica da comunidade indígena pelo Ministério Público Federal (MPF) quanto no processo demarcatório em andamento junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Arquivos como os que estão sendo descartados não apenas documentam o passado: eles atuam diretamente nos acontecimentos, influenciam decisões, afetam vidas e redesenham o espaço urbano. A perda inestimável impactará não apenas arquitetos e urbanistas que manejam essa burocracia no cotidiano de suas profissões, mas qualquer cidadão que precise construir, regularizar ou reformar um imóvel. A cena remete às páginas de A Menina que Roubava Livros, onde livros são incinerados na Alemanha Nazista para apagar ideias inconvenientes. Aqui, não houve fogo, mas o resultado é semelhante: o apagamento de registros que poderiam frear os interesses dos poderosos. A destruição desse acervo, em meio à revisão do Plano Diretor, não é somente um apagamento histórico, mas um golpe contra a memória urbanística da cidade. Sem documentos sobre o passado, apagam-se debates, eliminam-se entraves e aceleram-se obras que, livres de regras, avançam sobre as ruínas da cidade. Luís Gustavo Ruwer  é mestre em Sociologia e integrante do Programa de Extensão da UFRGS Preserve Morro Santana. Contato: lgruwer@gmail.com