A partir de hoje iremos soltar aqui, no Espaço Griô do Ventre Livre, 4 entrevistas – 1 por dia – com mestres que nos contam a história do Tambor de Sopapo, de Pelotas, de Rio Grande, do carnaval do sul do Brasil, das charqueadas, dos negros escravizados e livres que construiram a história do Rio Grande do Sul. Este compilado de depoimentos foi coletado ao longo das filmagens do filme O Grande Tambor (Coletivo Catarse – 2010) e transformado num livro distribuído a época do lançamento do filme. Sem mais, a palavra está com ele:
Mestre Baptista
Neives de Meireles Baptista, 76 anos em 2010. Trabalhou em fábrica de vidros, curtume, foi motorista de táxi, de ônibus urbano e interestadual. Tem o samba na alma, por sua descendência, mas aproximou-se mesmo do carnaval construindo instrumentos, fundando a Escola Imperatriz da Zona Norte, em Pelotas, e sendo mestre de bateria. Em 1999, recebeu o convite para montar 40 Tambores de Sopapo para o Projeto CABOBU. Aceitou e, hoje, é o principal luthier do instrumento no país.
Em Pelotas, na “Praça dos Enforcados”.
Gustavo Türck (GT): Então, Mestre, conta para nós a história desta praça (Praça do Pavão em Pelotas), o que ela representa para o carnaval de Pelotas, para a história dos negros?
Mestre Baptista: Esta praça aqui, a lembrança dela vem com tristeza. Para a gente que pertence à negritude aqui, né? Que é afrodescendente… As lembranças não são muito boas. Nesta praça aqui, que inclusive era motivo de festas há alguns anos, no tempo de escravidão, por que aqui eram enforcados os negros fujões, os negros indisciplinados, “eles” dependuravam nestas árvores aqui e convidavam toda a sociedade para assistir a matança dos negros. Inclusive, faziam festas, batiam palmas quando o negro começava a estrebuchar e espernear quando era enforcado. Então, esta praça nos traz lembranças muito tristes. Eu nem gosto de falar muito nisso. Inclusive, esta praça aqui, dizem, dizem que em determinadas épocas, de noite, ela é assombrada. Tem gritos, tem lamentos desses negros que foram enforcados aqui. É a história mais ou menos que eu conheço. Eu não sou contemporâneo da época, mas o que contam é que aqui enforcavam negros, e é por isso que esta praça aqui tem o codinome de “Praça dos Enforcados”, certo? Mas, na verdade, é a Praça do Pavão. Mas é a “Praça dos Enforcados”. Todo mundo sabe, falou em Pelotas da “Praça dos Enforcados”, todos sabem que é esta praça aqui, a Praça do Pavão.
GT: Mestre, fora essa história, a relação desta praça com o carnaval, se juntavam as pessoas aqui para fazer algum tipo de concentração mesmo com essa história toda?
Mestre Baptista: É, juntava. Na tua pergunta já está a resposta. Quando o carnaval era aqui na Av. Marechal Floriano ou pela Rua Quinze de Novembro, mais para cima à direita, muitas entidades que vinham aqui, principalmente do lado do bairro Fragata, eles faziam concentração aqui na praça. Eles não só concentravam como aqui eles bebiam, se embriagavam e aqui faziam suas necessidades fisiológicas aqui nesta praça. Porque, se vocês perceberem bem aqui, esta praça está praticamente às escuras, ela não tem iluminação. Então, existia essa concentração carnavalesca aqui em Pelotas, sim.
GT: Será que o fato de fazer as necessidades aqui, tratar a praça com um pouco de descaso não tem muito a ver com o que significava esta praça, Mestre?
Mestre Baptista: Não. Esse problema aqui da praça, dela estar nesse estado, é um problema político. Existe, inclusive, uma cobrança de imprensa escrita, falada, televisionada para cuidar mais desta praça aqui. Então, existem comprometimentos políticos em época de eleição, certo? Mas, depois que eles vão para o poder, não cuidam desta praça aqui. E é isso que vocês estão vendo, é uma praça bonita, antiga e histórica, mas infelizmente está mal cuidada.
Sérgio Valentim (SV): O senhor sabe da história de que o pessoal se reunia embaixo das figueiras? O Giba Giba contou para nós uma história de que no carnaval o pessoal se reunia aqui embaixo das figueiras…
Mestre Baptista: Justamente. É aquilo que eu falei. No carnaval existia concentração aqui antes deles subirem pro centro da cidade. Geralmente, as entidades que vinham deste lado da cidade (bairro Fragata), aqui era a concentração. E fora do carnaval também as pessoas vinham para cá passear. Aqui tem uma figueira grande, e as pessoas iam para lá tomar chimarrão, conversar, bater papo durante o dia, porque à noite não tinha iluminação, mas durante o dia existia reunião aqui nesta praça sim.
SV: E o CABOBU reuniu aqui o pessoal?
Mestre Baptista: Não, não, não. O CABOBU, ele praticamente iniciou as oficinas lá na Unidos do Fragata, na Escola de Samba Unidos do Fragata, e depois deu continuidade no Colégio Pelotense. O CABOBU só passava por aqui, pois vinha pela Av. Bento Gonçalves, vinha pela Marechal Deodoro, dobrava aqui na Marechal Floriano, dobrava aqui do lado do camelódromo, do lado da CEEE. Aí, pegava a Lobo da Costa e subia e ia até o mercado. Essa era a participação da praça no CABOBU, era só na passagem, passava por aqui.
Em Pelotas, na oficina em sua casa.
Marcelo Cougo (MC): Que mão de obra, hein, Mestre? (referindo-se à instalação dos equipamentos para filmagem)
Mestre Baptista: Mas é assim que funciona, é assim. Vai lá no Rio de Janeiro olhar quando eles estão montando para televisionar as escolas de samba, aquela parafernália que têm. Lá tem até máquina aérea…
SV: Então, tá valendo. Seguinte, o senhor vai conversar comigo, não precisa olhar para a câmera. O senhor poderia começar falando seu nome inteiro para nós e ai nós vamos começar a conversar, eu vou Le fazendo perguntas, vamos lá?
Mestre Baptista: Meu nome é Neives de Meireles Baptista. Eu sou nascido em Pelotas no ano de 1936. Portanto, eu estou com 73 anos e, agora em junho, 27 de junho, faço 74 anos bem vividos aqui em Pelotas.
SV: Eu gostaria de saber… O senhor começou como com esta história, com a música, sendo mestre de bateria no carnaval. Me conta como começou?
Mestre Baptista: Certo. Eu praticamente não comecei, eu continuei. Porque, devido as minhas origens… E isso é público, é notório e é histórico que a percussão veio da África. Então, como eu sou afrodescendente, eu já tinha na alma, nas veias, esta virtude de percussão. Eu não aprendi com ninguém. Eu não tenho um mestre que tenha me ensinado alguma coisa. Isso já estava dentro de mim. Então, eu fiz o que tinha de fazer como um homem casado. Eu trabalhei.
SV: O senhor trabalhava com o quê, Mestre Baptista?
Mestre Baptista: Eu trabalhei em uma fábrica de vidros aqui em Pelotas. Depois passei a trabalhar em um curtume. Eu pregava carneiras, couro, e eu pregava nas tábuas para secagem. Depois, dali eu fui embora pra Cerâmica Pelotense. E, na Cerâmica Pelotense, trabalhei nove anos – entrei em 1949 e saí em 1958. Dali eu fui embora para os táxis, foram dez anos consecutivos de vida noturna de táxi aqui em Pelotas. Um dia, minha mulher estava vendendo Avon para ajudar nas despesas, porque o salário não era muito bom, eu era comissionado como motorista de táxi, e, então, ela estava vendendo Avon, aí, ela foi entrar em uma residência aqui na Rua Fernando Osório para oferecer Avon e foi mordida por um cachorro. Aí, me telefonaram quando ela estava no hospital, quando cheguei lá, não tinha leito para ela. Estava sendo atendida no chão, e aquilo me doeu muito por dentro. Então, eu resolvi deixar os táxis, porque eu não tinha direitos sociais nos táxis, e, aí, foi quando eu procurei a empresa (de ônibus urbanos) Turf. E eu ia todos os dias de manhã para pedir uma vaga. “Mas é difícil, porque tu trabalhaste em táxi, e a gente está querendo um motorista que já esteja habituado com carro grande, com ônibus. Tem até vaga, mas para ti vai ser difícil”. Daí, eu disse: “Ué, mas façam um teste comigo!”. Então, eu ia todo o dia. Soltava do serviço que eu trabalhava à noite e, sete horas, sete e meia da manhã, eu estava lá. Aí, tanto que eles enojaram da minha cara que eu ia lá pedir serviço que eles resolveram fazer um teste comigo. “Faz um teste com ele aí, que assim já ficamos livres desse cara!”. Daí, tinha vinte motoristas lá fazendo teste, e eu fiz o teste. Era um carro a óleo, com uma caixa seca e embreagem desregulada. Eles faziam aquilo justamente para as pessoas rodarem no teste. Aí, voltamos depois de umas duas ou três horas de andar na cidade, retornamos para garagem da empresa. Aí, o diretor perguntou: “Quantos passaram?”. “Infelizmente, passaram só três”. “Sim, quais são os três que passaram?”. “É… Um é o Baptista aqui”. “Ah! Ele passou?”. “É, foi um dos melhores que passou no teste, e os outros são estes dois aqui que passaram”. Aí, o gerente foi e me deu os parabéns por ter passado no teste de direção e me convocou para que, no outro dia, às oito horas da manhã, eu estivesse lá para fazer experiência de linha. E, aí, eu fui. Fiz a experiência de linha, passei, fui com outro motorista, tudo direitinho. Levei a documentação, assinaram minha carteira, e eu tive na Turf dois anos. Nunca me envolvi em acidente, e foi quando eu resolvi ir embora para o Expresso Embaixador (de ônibus intermunicipais), ganhava mais. Fiz o teste no Embaixador, passei também, e eles me mandaram pedir minhas contas lá na Turf. Pedi as contas e fui para lá, onde fiquei por três anos. Foi aí quando me despertou a empresa Nossa Senhora da Penha (de ônibus interestaduais). A Penha entrou aqui em 1965 e cativou a minha mente, a minha lucidez. Eu perguntei para um motorista deles… Tive a oportunidade de saber se teria alguma dificuldade de eu trabalhar na empresa Nossa Senhora da Penha. Ele disse: “Olha, no teu caso tem. Tu me desculpe, eu não sou racista, mas a empresa Penha, aqui no Sul, não coloca pessoas de cor”. Eu só disse: “Faz o seguinte, tu só me avisas quando estiver lá que eu vou fazer… Onde é o teste?”. “É em Porto Alegre”. “E dá para tu me avisar quando tiver teste?”. “Te aviso”. E assim foi feito. Quando teve teste, ele me avisou: “Olha, estão inscrevendo motorista lá”. Eram em novembro os testes, que era para iniciar a temporada. Ele me avisou. Aí, eu fui, fiz todos os testes que eram necessários em 1969, testes, inclusive, de saúde. Testes rigorosíssimos – teste de visão, de dentadura, audição, coração, teste de ânus para ver se não tinha nenhum problema de hemorróidas, teste de sangue… Fiz todos os exames e passei em todos eles. Passei no teste de direção. Nós fomos até Vacaria pela BR116. Passei no teste, e foi quando deram os parabéns. “Agora, o resto dos testes é em Curitiba. A matriz da Penha é em Curitiba, é no Paraná”. Aí, eu fui embora para lá, mas eu não estava empregado ainda, então, fiz um psicotécnico de cinco horas e meia no hospital Bom Jesus com um casal de chilenos doutores, um teste psicotécnico até muito rigoroso. Passei. Depois disso, fomos para as oficinas, eu já tinha passado no teste de direção e em todos os exames que tinham imposto para mim e eu passei em todos eles. Fui para oficina para conhecer o carro que eu ia dirigir, era uma Scania. Então, passamos três dias nas oficinas. O chefe da oficina mostrando para nós os possíveis incidentes que poderiam dar nas viagens com esse carro e, então, nos mostrou como nós tínhamos que proceder para botar o carro a funcionar. Aí, trocamos os pneus traseiros e dianteiros, correias do ventilador. Então, fizemos tudo que era necessário dentro da oficina. Enquanto isso, assinaram a minha carteira. Depois, passamos na alfaiataria, pois lá havia uma alfaiataria própria. Foram tiradas as medidas, tudo direitinho, e foram feitos os fardamentos. Quando estava todo mundo fardado, embarcamos em um ônibus e fomos até São Paulo. Em cada curva que passávamos, o inspetor parava e dizia: “Aqui aconteceu um acidente assim, assim e assim. E morreram tantos por causa disso, disso, disso e disso”. Ele estava nos explicando tudo. Aí, chegamos em São Paulo, e eles olharam para mim e disseram: “O senhor que é de Pelotas vai entrar nesta estrada aqui”. Era a Via Dutra. “O senhor vai fazer Pelotas/Rio de Janeiro”. O seguinte, quando eu fui lá para a Penha, eu pensei que era motorista. Eles só aproveitaram a minha carteira e a minha boa vontade. Eu sofri uma reciclagem lá muito grande, eles me orientaram e me reorientaram como é que se dirigia um ônibus. Então, valeu essa orientação, eu aproveitei.
SV: Quantos anos o senhor ficou lá (na Penha)?
Mestre Baptista: Dezessete anos. Teve uma interrupção. Eu trabalhei de 1969 a 1971 e depois retornei em 1974. No total, foram dezessete anos, e nunca me envolvi em acidente. Saí condecorado. Só tiveram dois motoristas da Penha que foram condecorados. Fui agraciado também com uma festa em Porto Alegre na minha despedida em 1989.
SV: O senhor se aposentou em 1989?
Mestre Baptista: Me aposentei em 1989. Fui agraciado com o Cartão de Prata, e nesta festa se encontrava o diretor do DNR Nacional e mais o presidente da Penha Itapemirim, que era um complexo rodoviário, o segundo maior do mundo, que só perdia para um da Alemanha, porque lá, os ônibus, a empresa, pertenciam ao governo. Então, era o segundo maior complexo rodoviário do mundo, a Penha junto com a Itapemirim.
SV: A primeira privada, no caso?
Mestre Baptista: É, a primeira privada. Hoje, a Penha já não pertence mais à Itapemirim, já foi vendida para uma empresa aérea, para a GOL. Mas acredito que a matriz, a sede, continue sendo lá em Curitiba. Então, em 1989, eu me aposentei e iniciei a minha peregrinação na percussão dentro do carnaval.
SV: Aí, em 1989…
Mestre Baptista: Aí, em 1989 eu me aposentei e em 1990 eu iniciei a minha peregrinação no carnaval de Pelotas. Inclusive, a primeira bateria show de Pelotas eu idealizei, eu montei, eu ensaiei e eu apresentei para o mundo carnavalesco de Pelotas. Inclusive, essa bateria tinha uma variação de exercícios que foi apelidada de “Banda Marcial”.
SV: E foi aqui na Nega Fulô?
Mestre Baptista: Não, iniciou na Nega Mafuça.
SV: Que é uma escola de samba?
Mestre Baptista: Não, é um bloco burlesco. Mas eles (o bloco) não iam sair porque não tinham verba. Não tinham condições de sair, não tinham dinheiro. Aí, foi quando o sobrinho da minha mulher era o presidente dessa entidade. Eu procurei ele, eu já tinha um projeto, já tínhamos conversado. Eu digo: “Quero saber o seguinte. A Mafuça não vai sair porque não tem nem instrumento, não tem dinheiro. E se eu emprestar os instrumentos para a Mafuça sair e pagar para a Mafuça sair? Eu posso fazer o pré-carnaval com a Mafuça?”. Aí, ele disse: “Pode”. “Quanto é que tu precisas?”. “Tanto”. “Tá na mão. Então eu vou fazer o pré-carnaval com a Mafuça”. Aí, então, foi feito o pré-carnaval com o saudoso Cláudio Silva, já falecido. Foi feito o pré-carnaval, através da FUNDAPEL na época. E aí eu realmente paguei eles e emprestei os instrumentos na data para sair (na avenida). Então, depois, a gurizada me procurou, pois o meu contrato com a Nega Mafuça tinha terminado. Era só para o carnaval. Me procuraram porque eles sentiram que era uma bateria diferente, tinha coisa diferente naquela bateria. Eles me procuraram aqui em casa e me perguntaram: “Por que eu não seguia?”. “Não, na Mafuça eu não vou seguir mais”. Foi quando eu estava montando a Bateria Show e disse para eles: “Vou montar uma bateria”. Eu tinha os instrumentos. “Mas tem uma coisa, eu não vou abrir mão da disciplina. Tudo bem?”. “Tudo bem”. Eu aproveitei esta gurizada que estava comigo lá e iniciou a Bateria Show Santa Terezinha. Uma homenagem que eu estava prestando ao bairro Santa Terezinha, inclusive com as cores da indumentária dos ritmistas em homenagem à Santa, a padroeira aqui do bairro, que é verde e branco, certo?
SV: Esta foi a primeira?
Mestre Baptista: Esta foi a primeira. Essa bateria foi um sucesso muito grande. Eu tive duas vezes no Uruguai com ela, e ela saiu fora do Rio Grande do Sul, ganhou fronteiras e foi parar em Santa Catarina. Veio um pessoal de Florianópolis me procurar aqui para me contratar, e foi quando eu passei a me apresentar em Santa Catarina (Florianópolis) com a Banda Scorpion.
SV: E o senhor era o mestre de bateria?
Mestre Baptista: Eu era o mestre de bateria. E eu estive lá (em SC) durante cinco ou seis anos. Depois, eu entreguei a bateria para o meu filho e para minha companheira (minha mulher). Depois disso, eu passei a peregrinar pelas escolas de samba aqui de Pelotas para buscar mais um aprendizado, e a primeira escola de samba que me contratou sem eu ter experiência em escola de samba foi a Estação Primeira do Areal. Depois eu estive na Academia do Samba por três vezes, tive na Escola de Samba General Teles, onde eu fui campeão. E aí depois surgiu um edital aqui em Pelotas, do Ministério da Cultura, à procura de Mestres Griôs. Foi quando eu me inscrevi, mandei meu currículo para Brasília através do projeto Chibarro e da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas foi contemplada com dois Mestres Griôs, e eu sou um deles. A outra é a Dona Sirlei.
SV: E o Sopapo, Baptista?
Mestre Baptista: Depois de tudo isso aí, em 2000.
SV: Tu já eras Mestre Griô?
Mestre Baptista: Não. Em 2000, o Mestre Giba Giba, um pelotense ilustre, que saiu de Pelotas ainda menino, mas que foi contemporâneo do Sopapo, ele conheceu este instrumento. Ele tinha em mente um projeto para resgatar este instrumento que fazia parte das baterias de Pelotas até os anos de 1970/72, por aí. O instrumento de percussão das baterias aqui de Pelotas era só Sopapo, instrumento pesado.
SV: Era só Sopapo?
Mestre Baptista: Era só Sopapo.
SV: Até que ano mais ou menos, Baptista?
Mestre Baptista: Até 1970/72.
SV: Não tinha surdo?
Mestre Baptista: Não, não tinha. Era Sopapo. E aí resolveram imitar o Rio de Janeiro. Porque aqui era o segundo e o terceiro carnaval do Brasil. Para quem não sabe, e eu vou aproveitar este documentário, Pelotas é uma das cidades mais negras do sul do país, certo? O contingente de escravos aqui foi muito grande, e eles deixaram este legado que é o Sopapo. Então, o Mestre Giba Giba, que estava trabalhando na Secretária de Cultura do governo Olívio Dutra, queria saber quem é que poderia fabricar este instrumento (o Sopapo). Tinha um rapaz lá, que trabalhava com ele na secretaria, filho da Dona Iraí. Pessoa virtuosíssima, pessoa muito honrada que também montou uma escola de samba, uma escola muito bonita, uma escola guerreira, que foi campeã várias vezes, a Unidos do Fragata. Ele foi e disse: “Minha mãe conhece todo mundo lá em Pelotas. Quem sabe ela conhece alguém que possa fabricar este instrumento?”. Aí, ele fez contato com a mãe dele. “Oh, tem um rapaz aqui que fabrica instrumento. De repente ele pode fazer este instrumento, que é o Mestre Baptista”. Aí, foi feito o contato, foi feita a ponte. O Giba Giba fez contato comigo. Me procurou e me perguntou se eu faria este instrumento para ele. “Faço. Quantos tu quer?”. “Eu quero 40”. “Eu vou fazer um protótipo, e tu vens e olha para ver se é isso que tu queres. E Qual é a metragem?”. “Um metro de altura por cinquenta e dois de boca”. “Ótimo, eu vou fazer o protótipo e vou te chamar”.
SV: Quem lhe deu primeiramente como era este instrumento foi o Giba?
Mestre Baptista: Foi o Giba, mas eu também já conhecia este instrumento. Já conhecia do carnaval, mas nunca tinha feito. Aí, foram quebradas duas folhas de compensado, quebrou, pois eu não sabia. Até que eu acertei. Acertei e fiz um.
SV: E o instrumento que o senhor via no carnaval é igual ao que o senhor faz?
Mestre Baptista: Não, este é mais sofisticado.
SV: Descreve o anterior aí, o do carnaval. Como ele era?
Mestre Baptista: O anterior, o do carnaval era maior. Ele era bem maior que este, e a boca era bem maior também. E os suportes onde vinham os puxadores para a afinação… Eles eram feitos de prancheta, eles eram dobrados, porque eles faziam um “L”, faziam um furo e, aí, aquilo ali com o tempo ia entortando, entortando e desafinando o instrumento. Chegava ao ponto de, às vezes, antes de entrar na passarela, ter que fazer uma fogueira para aquecer os instrumentos, porque a afinação era ruim, muito ruim a afinação. Mas era um sucesso na época (o Sopapo).
SV: E como ele era carregado?
Mestre Baptista: Era carregado com talabarte. Botava o talabarte no ombro e vinham. Botavam para o lado e vinham tocando com as duas mãos o Sopapo – justamente porque tem que dar bofetada nele para sair o som. Aí eu fiz o protótipo. Chamei o Giba Giba, e ele veio: “É isso aí que eu quero. Mas como é que tu fizeste?”. “Como eu fiz não interessa, quantos tu queres?”. “Eu quero 40”. “Então faltam 39”. Aí foi justamente quando iniciaram as oficinas do CABOBU na Escola Unidos do Fragata.
SV: E o que era o CABOBU? Explica para nós.
Mestre Baptista: O CABOBU, para quem não conhece, era um… Era não, porque ele vai retornar… Uma homenagem que o Giba Giba estava prestando a uns contemporâneos da época que manuseavam este instrumento. Então, ele tirou o sufixo dos apelidos deles e aproveitou os prefixos. Eram o Cacaio, o Boto e o Bucha. Aí ficou CABOBU. Então, era um projeto político, com verbas públicas do governo Olívio Dutra. E, na minha visão, o Olívio se recandidatou, mas não se reelegeu e acabou o CABOBU. Aí o Giba lutou aqui (em Pelotas) para ver se o prefeito da época, que era do PT, assumia o projeto, mas o prefeito falou que não tinha verba para isso aí. Era um projeto caro. Aí parou o CABOBU e foi lamentável que isso aconteceu, porque foi criada uma expectativa aqui dentro de Pelotas, a Orquestra do Sopapo durou dois anos…
SV: Foi formada uma orquestra de Sopapo?
Mestre Baptista: Foi formada. Eu formei uma orquestra de Sopapo, e foi um sucesso muito grande. Aqui teve profissionais do Rio de Janeiro, teve profissionais de Minas Gerais, profissionais de São Paulo, da Bahia, que vieram para cá a convite do Giba Giba.
SV: Eles vieram para cá tocar Sopapo?
Mestre Baptista: Eles vieram para cá assistir e documentar o Sopapo. Hoje, eu até falo com muita tristeza porque o CABOBU deu uma parada, mas agora, falando com o Mestre Giba Giba, ele me garantiu que está agilizado para o retorno do CABOBU e está contando com o meu profissionalismo, com o meu trabalho, com o meu conhecimento de mestre de bateria e fabricante deste instrumento para dar continuidade ao CABOBU. Então, eu vejo isso com muita alegria e aguardo que o Giba Giba tenha sucesso nessa investida novamente. Se trata de um projeto muito grande. Projeto em nível nacional, aonde está elevando-se o nome da cidade e está elevando-se também a negritude da cidade mais negra do Sul do país, que é Pelotas.
SV: Eu gostaria que o senhor explicasse essa história de o senhor ter feito o tambor assim… De onde o senhor tirou o conhecimento? O Giba Giba lhe disse: “Eu quero um tambor assim, assim e assado”. Aí ele voltou aqui, e o senhor estava com o tambor pronto?
Mestre Baptista: Muito simples, eu vou filosofar então. Para aqueles que estão afim, para aqueles que acreditam. Eu há 50 anos professo o Espiritismo, embora não seja espírita, eu estou há 50 anos no Espiritismo, porque ser espírita requer uma série de virtudes angelicais que eu ainda não possuo. Mas tenho alguns conhecimentos quanto à profundidade do assunto, porque Espiritismo não é uma ciência, não é uma religião. Então, eu apelei para os Orixás, para eles me darem intuição para eu poder fabricar aquele instrumento… O Sopapo é uma cubana grande, ele é um atabaque, ele é o “Atabaque Rei”. Esse instrumento pertence a Xangô, certo? Então, pedi socorro para eles, e eles me deram socorro, eu fui atendido. Eu mantenho relacionamento com o mundo externo, com o mundo dos espíritos há 50 anos. Eu sou um médium e, então, sei como me comunicar com eles. Eles me passaram o que eu tinha de fazer e aí foi feito. Então, eu não quebrei mais compensados, e, a partir desse momento para cá, eles continuam me dando intuição. Este instrumental já sofreu um progresso, uma evolução dos primeiros que eu fiz para o CABOBU.
SV: E de antigamente? Como ele era antigamente?
Mestre Baptista: De antigamente ele já vem sofrendo uma evolução. Vocês podem perceber que os próprios afinadores são completamente diferentes, eles não são iguais aos afinadores de antigamente, que eram um “L”. Agora não. Agora é uma cruz e é soldado e é reforçado por dentro. Eu trabalho com compensado de 4mm, e ali onde é forçado para afinar o couro, porque não é pele é couro, ele leva 12mm de compensado. Não sei se vocês já perceberam isso aí. Então ele leva 12mm – o de fora e mais duas partes pelo lado de dentro, que é um reforço para o compensado não sair para fora e nem entrar para dentro e para afinar o instrumento. Eu faço tudo aqui. A única coisa que eu não faço aqui é o couro, as madeiras e o ferro, o resto tudo eu que faço.
SV: E é couro de quê, Baptista?
Mestre Baptista: Inicialmente eu usei couro de cavalo, a raspa do couro de cavalo. Mas nós estamos com dificuldade aqui em Pelotas, porque o curtume que fornecia essas raspas de couro de cavalo não está mais trabalhando com cavalo. Então, eu passei a trabalhar agora com o couro bovino e o couro de bode velho.
SV: E os de antigamente? Eram com couro de cavalo?
Mestre Baptista: Era couro de cavalo.
SV: E ele originalmente era feito do tronco da árvore?
Mestre Baptista: Isso não é oficial. Segundo os meus conhecimentos, a história que chegou até mim, o Sopapo era feito de tronco de árvore. Acredito eu, por exemplo, que a árvore que os escravos lá na África faziam, que começaram a fazer este instrumento, devia ser uma árvore assim como a Cortiça. Eles começavam a cavocar por dentro, já deixando o tronco da árvore cônico, certo? Eles matavam o animal, depois eles pegavam o couro em natura do animal e botavam o couro na cinza para tirar o cabelo e, já molhado mesmo, eles botavam no instrumento e amarravam, puxavam e amarravam lá embaixo.
SV: O que amarra o couro?
Mestre Baptista: Justamente, tem uns pinos e o couro é amarrado.
SV: E era assim que eles faziam antigamente?
Mestre Baptista: Antigamente era feito assim. Só que, quando eles iam tocar este instrumento, eles geralmente faziam fogueira e sentavam em cima.
SV: Como fazem os uruguaios?
Mestre Baptista: Justamente. Então, tem aqui este instrumento que é de origem africana (mostra o instrumento que foi a ele dado na África). Olha aqui os pinos. E aqui está a afinação do instrumento. Então, naquela época, quando eles iam tocar no sereno, o instrumento desafinava. Então, eles faziam a fogueira, botavam o instrumento no chão em direção à fogueira, aí, o instrumento afinava, eles sentavam em cima do instrumento e dali eles faziam as batidas e tocavam para os Orixás. Depois, este instrumento vem sofrendo, como eu falei anteriormente, uma evolução. Eu venho procedendo uma evolução neste instrumento.
SV: Gostaria que o senhor contasse um pouco para nós a história deste instrumento. Porque ele é um “Atabaque Rei”, então, a importância dentro da religião. Por que o Sopapo carrega tanta coisa em volta dele? A gente estava conversando aquele dia que alguns músicos teriam medo ou receio de tocar, músicos que tocam percussão e que quando olham o Sopapo se apavoram com o tamanho, com a imposição e tal. Eu queria que o senhor contasse um pouco da história dele e tentasse me dizer o que tem em volta deste instrumento que a gente não consegue explicar?
Mestre Baptista: As terreiras aqui de Pelotas, que são muitas… Tem muita terreira aqui em Pelotas. Elas não usam também este instrumento, eles usam atabaques menores. Eles não usam este instrumento aqui. O Sopapo tem uma força espiritual muito grande. Como eu falei anteriormente, ele é um “Atabaque Rei”, ele pertence a Xangô, e você, para manusear ele, tem que pedir permissão. Se você obedecer às regras para manusear este instrumento, ele vai trazer sorte para quem o tem. Então, quando eu entrego este instrumento, ele já vai praticamente consagrado daqui, já vai benzido. Quando eu entreguei um instrumento a vocês, eu avisei que ele iria levar luz para vocês, iria levar sorte para vocês. E o que aconteceu? Ele deu sorte, não deu?
SV: Muita sorte…
Mestre Baptista: Então, não precisa ter medo dele. Ele carrega uma energia muito forte. Ele deu muita sorte para mim também. Ele vem me mantendo e vem mantendo muitas pessoas. Todo aquele que adquire este instrumento, ele evolui financeiramente, certo? Então, muita gente que tem um espírito, uma mediunidade negativa, se afasta deste instrumento porque ele sente que se trata de um instrumento sagrado. Eles se afastam dele, pois percebem que não é para eles este instrumento. Então, eu digo isso com algum conhecimento de causa, para manusear este instrumento, para ser proprietário deste instrumento, não pode ser um bruto, um estúpido, não pode ser um malvado. Tem que ser uma pessoa sensível, tem que ser uma pessoa cristã, pessoa caridosa, porque, então, dá certo. Se for uma pessoa estúpida, não vai tirar nem o som necessário que este instrumento produz. Porque ele tem várias tonalidades. Inclusive, se o carioca conhecesse este instrumento, o Sopapo, ele não precisaria ter inventado o surdo de terceira, pois este instrumento já fazia este papel aqui nas baterias de Pelotas.
SV: Ele fazia o papel do surdo de terceira?
Mestre Baptista: Sim, ele fazia o papel do surdo. Ele vinha fechando os espaços.
SV: Ele fazia o papel do surdo de primeira, de segunda e de terceira?
Mestre Baptista: De primeira, de segunda e de terceira.
SV: E aí, conforme foi rolando a substituição, ele foi sendo deixado de lado para fazer só a terceira?
Mestre Baptista: Justamente. Mas aqui, na época da Orquestra de Sopapo, no CABOBU, eu fiz naipes com eles. Porque aí tu faz a afinação diferente deles, e a batida, a levada, tu também faz diferente. Então, tu podes fazer, por exemplo… Tu fechas uma sequência de batida com ele. Tu podes fazer a segunda, a terceira e a quarta com ele, e ele fecha todos os espaços, dependendo do manuseador, dependendo do mestre que está ensinando, orientando a tirar som deste instrumento. Então, se trata de um instrumento de grande valia que infelizmente o nosso carnaval, as nossas escolas de samba e nossas baterias abandonaram. Então, eu peço, aproveitando este documentário que está sendo feito, para as pessoas se aproximarem mais deste instrumento, que é um instrumento de grande sonoridade, de várias sonoridades e é um instrumento sagrado. E, se este documentário tiver alcançado as pessoas que praticam a religião afro, que estas adquiram este instrumento, que é de Xangô. Ele faz parte da religião afro.
SV: E as terreiras aqui não usam?
Mestre Baptista: Não, não usam. Não usam talvez até por falta de conhecimento. Porque ele foi apagado da história. E este instrumento, quando surgiu aqui em Pelotas, ele fazia parte do carnaval, e o carnaval fazia parte de uma festa pagã. Talvez por causa disso aí que os nossos chefes de terreira não quiseram que se usasse mais este instrumento.
SV: E provavelmente antes do carnaval ele era usado… Ou não?
Mestre Baptista: Olha, eu não tenho conhecimento. Não me chegou até agora, e eu estou há muitos anos dentro da religião, deste instrumento fazer parte das religiões afros. Eu não me lembro, eu nunca vi. Eu acredito que nenhuma aqui tenha o Sopapo, não acredito. Eu vendi um para um cacique de terreira e depois eu fui ver este instrumento lá na Academia do Samba. Ele doou para a Academia do Samba, começou na terreira, mas não sei o que houve, se as pessoas não se adaptaram, e ele doou para a Academia do Samba. Eu fiz um também para uma terreira aqui perto de casa e eu falei com a cacique de terreira, e ela disse que não se adaptaram a tocar aquele instrumento. Foi feito o coreto, eu mandei direitinho para eles botarem dentro do coreto para tocar e, inclusive, independentemente a não se adaptar a tocar este instrumento ele estava criando problema dentro da terreira, porque as entidades baixavam e depois não queriam subir, ficavam teimosas. Não queriam subir por causa do som deste instrumento. Então, foi criado problema dentro desta terreira, e ela se desfez deste instrumento, e ele hoje se encontra na Bahia. Porque, quando eu fui lá oficinar sobre o Sopapo em um projeto da Caixa Econômica Federal, em Salvador, ficaram cinco instrumentos. Eu levei quatro prontos e um eu oficinei lá, e um desses quatro foi o desta terreira que me havia devolvido o instrumento.
SV: Gostaria que o senhor contasse um pouco da importância, falando um pouco da característica e do antigo carnaval que usava este Sopapo. Qual é a diferença sobre o carnaval de antigamente de Pelotas com a utilização deste instrumento, musicalmente falando. O senhor, como percussionista, como músico… Tecnicamente era diferente o carnaval daqui? O som? E as músicas produzidas, o samba era diferente pela utilização deste instrumento, pela marcação e pela característica dele? Então, como era o samba antigamente e a influencia do Sopapo neste samba e a transformação do samba com as mudanças, pois o samba foi mudando, mudando…
Mestre Baptista: Veja bem que eu falei anteriormente que Pelotas foi o segundo e terceiro carnaval do Brasil – por causa deste instrumento, por causa do Sopapo. Então, na época, vinham turistas da Argentina, Uruguai, do Paraguai, do Chile, do Peru. Eles vinham todos para cá. Na época de carnaval aqui em Pelotas, tu não encontravas nenhum apartamento ou hotel à disposição, e, às vezes, tinham de dormir até em residências de pessoas que se dispunham a receber esses turistas… De tanta gente que vinha para cá. Por exemplo, estes bonecos que vocês veem em Olinda, Pernambuco e em Orlando nos EUA eram daqui de Pelotas. Era uma época em que tinham esses bonecos aqui e hoje só resta um boneco desses aí, que está representando a época, que é a Bruxa da Várzea. Não sei se vocês chegaram a ver a Bruxa da Várzea? É um boneco grande e continua (no carnaval), que é daquela época. Aqui em Pelotas, a bicharada, os blocos eram muito grandes. Aqui nós tínhamos a Girafa da Cerquinha, nós tínhamos aqui o King Kong, tinha o Bloco do Galo, tinha o Bloco do Papagaio, Bloco do Bode, Bloco do Camelo, Bloco do Dromedário… Então, esses animais todos tinham aqui em Pelotas, porque o segundo e o terceiro carnaval do Brasil não era também só por causa do Sopapo. Era uma época em que os clubes sociais de Pelotas participavam deste carnaval, com aqueles carros exuberantes, carros alegóricos. Então, o Sopapo fez parte dessa época e depois, por causa da burocracia – como diz o Giba Giba -, resolveram imitar o Rio de Janeiro e aí tiraram os metais. Pois não existia samba enredo, não existia harmonia… A harmonia era feita por metais, por sopro.
SV: Não tinha enredo?
Mestre Baptista: Não tinha enredo, não tinha carro de som, era tudo instrumental. Eram metais. Então eles tiraram os metais, tiraram o Sopapo para imitar o Rio de Janeiro, e aí entrou o carro de som, entrou a harmonia, entraram os sambas enredo e os compositores para fazer os sambas de enredo, entraram os puxadores de samba. Aí, então, eles foram eliminando o carnaval de Pelotas e hoje eles não conseguem imitar o carnaval do Rio de Janeiro, porque ninguém consegue, pois é o maior carnaval do mundo, e nem conseguem voltar às características do carnaval de Pelotas, que foi o segundo e terceiro carnaval do Brasil. Nós fugimos das nossas características… Inclusive tem até um ditado que o Giba Giba fala. Ele diz que estava afim de criar o “Bloco Sociedade Recreativa e Carnavalesca Eles Já nos Viram”. Aí, tu pergunta para o Giba: “E quem é que já nos viu?”. “Os burocratas”. São os mesmos que acabaram com o carnaval de Pelotas e estão acabando. Hoje, existe aí uma meia dúzia de abnegados, de heróis que conseguem vir trazendo este carnaval através das entidades carnavalescas. Pra tu colocar uma escola de samba hoje na rua, tu precisa de muita verba, sai muito caro. Então, são os abnegados, pois terminou o carnaval, e eles têm de fazer as contas de como vão pagar as dívidas que ficaram do desfile. O dinheiro que eles recebem para colocar uma escola de samba na rua é muito pouco, é insignificante. Não há condições, e o carnaval de Pelotas, no momento em que quiseram imitar o carnaval do Rio de Janeiro, com o surgimento das escolas de samba, houve uma profissionalização do carnaval, e então todo mundo cobra. Então, o carnaval aqui de Pelotas gera emprego e gera renda. E aí tem essa meia dúzia de abnegados que estão tentando levar o carnaval de Pelotas na raça. É difícil, mas eu oro que dê tudo certo para eles. Pois eu já tive… Já fundei uma escola de samba aqui em Pelotas e eu sei como funciona isso aí.
SV: Qual escola de samba?
Mestre Baptista: A Imperatriz da Zona Norte praticamente é um espermatozoide meu. Ela nasceu aqui em casa, que é um seguimento da própria Bateria Show, verde e branca – que são as cores da Imperatriz da Zona Norte. O prelúdio da escola fui eu quem pediu para um compositor amigo meu fazer, e ele queimou pestana, fez dois ou três, e eu não aceitei: “Não é isso que eu quero, quero uma coisa mais lúdica, uma homenagem à Santa, à padroeira do bairro”. Aí, foi quando ele teve a ideia e me chamou e disse: “Vê se serve este aqui?”. Aí, ele cantou para mim, que é este aqui: “Oh, Santa Terezinha, nos abençoai. Somos a Zona Norte trazendo a bandeira da paz”. Daí eu aceitei: “É isso aí que eu quero”. E a escola continua até hoje com esse prelúdio. Então, essa escola nasceu aqui em casa.
SV: E que ano era isso, Baptista?
Mestre Baptista: Isso foi em… Nós estamos em 2010… Isso foi antes do CABOBU.
SV: Eu ia lhe perguntar isso agora. E tinha Sopapo na escola?
Mestre Baptista: Na Imperatriz não tinha. Porque foi antes do CABOBU. Pois quem é que revitalizou, quem resgatou o Sopapo praticamente foi o Giba Giba, e isso a cidade deve para ele, pois ele resgatou o Sopapo através deste projeto, pois nós nem lembrávamos mais do Sopapo. Hoje não. Hoje eu tô montando um projeto, que é uma Ação Griô, no Instituto de Menores aqui de Pelotas, que trabalha com crianças carentes. E, a partir de março, eu estou iniciando este projeto com uma bateria. Essa bateria é uma homenagem póstuma, um tributo que eu quero prestar aos negros que pelearam na Guerra dos Farrapos, que estão esquecidos, que estão apagados. São os Lanceiros Negros. Então eu quero prestar essa homenagem póstuma a estes heróis que pelearam, muitos tombaram e foram enganados.
MC: Mestre, a gente andou visitando algumas charqueadas que restaram aqui em Pelotas e em nenhuma delas… Talvez somente em uma delas haja o resquício de uma parede de uma senzala. Todas as outras estão maquiadas para o turismo. A gente foi na “Praça dos Enforcados”, que é uma praça belíssima e muito importante para negritude de Pelotas, e ela está abandonada. A gente falou sobre o carnaval, e ele está burocratizado. A gente falou sobre o Tambor de Sopapo, que quase foi extinto, a gente falou sobre os Lanceiros Negros e sabe que essa história foi mal contada. Como é que o senhor sente isso?
Mestre Baptista: Bom, o Sopapo não foi quase extinto… Ele foi extinto e resgatado pelo Giba Giba. E olha… O que eu sinto é o seguinte, eu vejo isso com um pouco de apreensão e preocupação, pois estão tentando mascarar a história. Porque Pelotas foi uma das ultimas cidades a dar liberdade para o negro. Essa praça, que é a “Praça dos Enforcados”, é justamente porque ali os escravos eram enforcados, eram mortos ali – e com festa! Era convidada toda a sociedade de Pelotas para assistir a morte dos negros. Essas charqueadas, que estão maquiadas, que é para não dar ao turista a visão do que aconteceu aqui, as atrocidades que aconteceram na escravidão aqui em Pelotas. Pois há muitos negros que, depois da escravidão, já voltaram para África. Aqui teve príncipes, teve princesas. Inclusive, aqui no mercado de Pelotas e no mercado de Porto Alegre, um príncipe assentou um Bará no centro do mercado. Tiveram aqui pessoas importantes, que foram trazidas para cá como escravos. Muitos não aceitaram a escravidão e terminaram se suicidando. Outros mataram porque eram negros rebeldes e não aceitavam aquilo, foram mortos. Hoje eu estou tentando – e se os Orixás me ajudarem – prestar essa homenagem a esses lanceiros. E digo mais uma vez: negros que foram enganados. Eles tinham um tratado para pelear e, depois que terminasse a Guerra dos Farrapos, eles teriam a liberdade deles. Essa liberdade não foi dada, não foi honrado o trato, e foram mortos – que é a grande traição dos Porongos. Isso está abafado. E que eu vou me incomodar com isso, vou. Mas e aí? É um direito meu como negro prestar essa homenagem, e eu não vou deixar morrer essa coisa tão bonita que eles fizeram no Rio Grande do Sul. Quero com isso dizer que eu estou montando uma bateria, estou montando um show, e nessa bateria vai Sopapo. Agora vai Sopapo. Então, ela vai no mínimo com três ou quatro Sopapos que eu vou colocar na bateria. Ela vai com surdo de primeira, que é feito como bumbo, vai com dois surdos de segunda, que é de náilon, que está com uma oitava acima do bumbo de primeira, entro com dois bumbos de terceira, de náilon também, que está com uma quarta acima do surdo de primeira e uma quarta abaixo do surdo de segunda, ele entra no meio. E vou também com um surdo de quarta, um surdo de marcação. E, aí, eu tô montando para quem toca violão, para quem é musico, um acorde fá com 7ª aumentada. Eu tenho o aparelho, tenho tudo aqui em casa onde eu afino meu violão e o bandolim e ali eu afino os instrumentos. Vai com seis taróis, seis repeniques, seis tamborins, seis afoxés, um par de pratos e quatro ganzás. E, se aparecer alguém que sabe tocar frigideira, eu vou colocar uma frigideira. Ou seja, eu tô resgatando alguma coisa que ficou muito longe daqui, que é as baterias de antigamente de Pelotas. Eu estou em busca do molho, eu não quero correria na minha bateria, eu quero cadência. Então, eu tô montando o show e espero que Deus me ajude, que os Orixás me ajudem e me auxiliem como têm me auxiliado até agora. E, para aqueles que fazem parte deste documentário, que assistem, que também participem, pois eu acho que não é eu, mas, sim, nós. Eu gosto de trabalhar em equipe e eu vou precisar de apoio. Embora eu tenha apoios importantes, pois o barco já saiu do cais do porto, já esta em alto mar…
Após pausa na entrevista, Mestre Baptista volta cantarolando.
Mestre Baptista: “Em seu lugar. Pedi para ficar. Porém você não me deixou. Agora, você voltou para seu governo…”. Me esqueci da letra (risos).
MC: O senhor se lembra de algumas marchas, cantigas de carnaval?
Mestre Baptista: Tem, tem.
MC: Tinha alguma que falasse do Sopapo?
Mestre Baptista: Não, daqui de Pelotas não.
MC: E aquela do Giba? Ele compôs ela para o CABOBU?
Mestre Baptista: É. Aquela ele compôs para o CABOBU. “CABOBU na tua terra. Hoje é dia do tambor…”. Ele fez uns arranjos bons na bateria. Giba Giba é um filosofo contemporâneo.
MC: Como é que foi a emoção de encontrar o Giba Giba? A gente viu que os dois têm muito respeito, muito carinho um pelo outro…
Mestre Baptista: É uma emoção grande, porque o Giba Giba… Eu tenho um carinho e um respeito muito grande por tudo que ele está fazendo para negritude através do resgate deste instrumento, do Sopapo, e do qual eu sou beneficiado também. Porque aqui em Pelotas eu venho fazendo um trabalho também, paralelo, para a negritude aqui. E é aquilo que eu falei agora há pouco: é a escola de samba Imperatriz da Zona Norte, a primeira Bateria Show, que eu deixei aqui em Pelotas, e agora mais este projeto que eu estou fazendo em homenagem aos Lanceiros Negros. Então, eu também venho fazendo esse trabalho aqui, de valorização da “negrada”, e o Giba Giba vem fazendo isso há muito tempo. Foi um encontro que enriqueceu ainda mais a coisa negra, pois, se ele sozinho já estava revolucionando e eu também sozinho já estava fazendo guerra, agora virou uma batalha. É um casamento que deu certo, e ele mesmo falou aquele dia que veio aqui em casa: “Sempre que nos encontramos é porque vai acontecer alguma coisa”. Aí, foi quando eu contei para ele desse projeto dos Lanceiros Negros, e ele me falou que o CABOBU ia retornar. Eu tenho muito respeito, é uma pessoa que tem muito valor para mim, embora nós tivéssemos uma diferença através do CABOBU – e isso até nós acertarmos as coisas -, terminou com ele me entendendo e eu passando a entender ele. Para mim ele é quase como um Orixá, o Giba Giba. As ideias dele são quase sempre extraordinárias, ele está sempre lutando. Eu tenho um grande respeito e uma admiração pelo Mestre Giba Giba. É um compositor, um cantador, um lutador e ele projeta as coisas para as coisas acontecerem. Espero eu que Deus abençoe ele e que os Orixás iluminem ele também e que ele possa fazer muito mais coisas que ele já fez pela negritude e pelos não negros também, aqueles que também estão afim e respeitam a cultura negra. Também espero eu reencontrar novamente o Giba Giba no CABOBU e que nós sejamos felizes e possamos presentear não só a negritude, a sociedade pelotense e gaúcha, presentear os Orixás também. Com esse presente que Giba Giba nos deu aqui para Pelotas e que criou uma expectativa muito grande, mas deu essa parada… Até hoje eu sou cobrado por que o CABOBU acabou e se vai voltar o CABOBU. Mas eu não tenho certeza, pois eu dependo da Giba para o CABOBU voltar. O Odara, por exemplo, é uma continuação do CABOBU, que inclusive tem Sopapo lá, tem atabaques também… E agora, com esse projeto dos Lanceiros Negros, que não é um CABOBU, mas é também um projeto direcionado para as coisas negras, certo? Então, eu tenho um relacionamento de respeito, de admiração muito grande pelo Mestre Giba Giba.
MC: O senhor falou em casamento. Aqui, fora das câmeras, nós falamos um pouco sobre o masculino e o feminino, o Sopapo e a cuíca. O senhor é um mestre cuiqueiro e falou que o Sopapo é o pai do samba e a cuíca a mãe do samba. Eu gostaria de saber como se dá a sua relação com a Dona Maria, como é que entra essa relação do feminino com o Sopapo, que é um instrumento tocado por mãos masculinas?
Mestre Baptista: Olha é um relacionamento que, por exemplo… Tu falou na minha companheira, a Dona Maria, que é meu anjo da guarda. Ela me ajudou nesse resgate deste instrumento. Ela e meu filho, que mora aí nos fundos, me ajudaram a resgatar este instrumento fazendo as oficinas junto comigo. Meu filho e a minha esposa me ajudaram a fazer os 39 Sopapos que restavam para o CABOBU. Sempre estiveram junto comigo. O feminino é indispensável, o feminino é bíblico. Veja que, perguntado ao senhor Jesus Cristo se a Terra ia acabar e quando, ele disse: “Não te preocupeis quando a Terra vai acabar, porque, enquanto existir um jota ou um til, a Terra aí estará”. Eu entendo que ele estava falando por parábolas que, dentro desse jota e til, está a mulher. Ou seja, quando a mulher parar de parir, não existirá mais motivos para a Terra estar aqui. A mulher é a dona do mundo, é ela que alavanca a humanidade. Então, logo que ela não quiser parir mais, não existirá mais necessidade da Terra estar aqui. E enquanto a cuíca… A cuíca rouba o espetáculo e hoje, por isso, é muito difícil tu ver uma banda de pagode com cuíca. A cuíca rouba o espetáculo… Geralmente, o sambista, o carnavalesco, que é o meu caso, nós somos vaidosos, a gente quer aparecer, só que a cuíca não deixa. Assim que a cuíca entra no samba e começa a tocar, ela rouba o espetáculo e rouba a atenção do pessoal. Vocês viram aquele dia que eu estava tocando lá em Rio Grande? Que o pessoal todo prestava atenção? Foi ou não foi? Estava todo mundo interessado na cuíca. É um instrumento de difícil execução. Eu levei muito tempo para poder manusear ela. Aquilo ali é um vibrador que tem aí dentro, e eu desenvolvi alguma coisa para poder tirar som dela, eu não trabalho com água pura. A cuíca também é um ritual, e venho desenvolvendo alguma coisa nela para ela poder gritar. A cuíca é um instrumento de percussão, e, se tu colocar uma bateria a tocar, eu me retiro uns 4 ou 5 metros dela e começo a tocar e acompanhar a bateria, pois, se tu não escutar a cuíca, eu dou ela de presente para ti. Então, eu não trabalho com água pura, não é água pura. O pano… Eu uso um pano especial para tocar a cuíca. A afinação… Tem que saber afinar também ela. Então, existe um casamento entre a cuíca e o Sopapo, o surdo e o pandeiro, estes quatro são indispensáveis em uma roda de samba. E aí entra o feminino, pois tu não faz uma roda de samba sem a mulher. A mulher é a graça, o encantamento. A mulher samba, ela dança, ela canta. Eu tenho grande respeito, apreço e admiração pelo sexo oposto. Diz que a mulher é o sexo frágil, mas eu não acredito. Eu, se não fosse a minha mulher, talvez eu tivesse sucumbindo. Agora mesmo eu sofri um problema de saúde e estou fazendo um tratamento caro, e minha mulher foi quem encabeçou um projeto para eu poder fazer esse tratamento pedindo auxílio para os carnavalescos, para as pessoas conhecidas, porque eu gasto R$ 800,00 por mês com esse tratamento. Porque eu sou muito covarde quando se trata de cirurgia e eu não quis fazer a cirurgia. Eu optei por fazer o tratamento natural, e quem encabeçou e idealizou a ajuda para esse tratamento foi a minha mulher. E é por isso que eu digo: ela não é minha companheira, ela não é minha esposa, ela é meu anjo da guarda. Existe, então, um relacionamento muito grande, e eu não faço nada, não tomo nenhuma atitude em relação à percussão sem primeiro conversar com ela, e ela que diz se tá bom, tá regular ou se tá ruim. Então, ela participa diretamente de 100% das minha decisões como mestre de bateria, como percussionista e como músico.
SV: Mulher toca Sopapo?
Mestre Baptista: Pode tocar, eu, por exemplo, não tenho preconceito de mulher tocar Sopapo. Só que ela tem que ter três itens que eu não abro mão, que é a disciplina, a disciplina e a disciplina. Aí não tem problema nenhum, e ensino ela a tocar o Sopapo. Eu não sou sopapeiro, mas sou um mestre de bateria e sei como se manuseia ele. Eu toco todo e qualquer instrumento de uma bateria. Se aparecer uma mulher que queira aprender a tocar o Sopapo, não tem problema nenhum. Eu não tenho preconceito nenhum.
SV: O senhor conhece mulher que toca Sopapo?
Mestre Baptista: Não.
SV: No Odara também não tem?
Mestre Baptista: Não, no Odara as mulheres só dançam. Quem toca Sopapo lá é o Dilermando.
MC: E ele toca bem?
Mestre Baptista: Toca bem. Ele é meu aluno. Eu que dou umas orientações a ele. E ele vai me auxiliar na montagem desta bateria lá no Instituto de Menores. Ele também é um aprendiz de Griô, e por isso eu oriento ele.
SV: O senhor sendo de Pelotas não chegou a conhecer nenhum dos CABOBU? Cacaio, Boto e Bucha?
Mestre Baptista: Conheci, fui contemporâneo.
SV: Ah, é? Então me conta uma história desses rapazes…
Mestre Baptista: Conheci eles. O Cacaio, eu cheguei a levar a cuíca lá. Foi um dos grandes mestres de bateria, um dos melhores que teve aqui em Pelotas. É uma pena que Deus já levou ele. Eu levei a cuíca pra ele lá, e ele disse: “Dá uma puxada”. E aí eu puxei, ele fez “ok” com o dedo e disse: “Aprovado”. “Solta ela” – ele dizia. E eu soltava. “Pô, que loucura!” – dizia ele. Em uma época que não existiam os recursos de percussão que se tem hoje. Hoje já está tudo diferente. Tem surdo de segunda, de terceira, surdo de quarta, surdo de náilon e, naquela época, não tinha. Era tudo couro. Eram Sopapos e não tinham tamborins. E assim mesmo ele brilhou aqui, o falecido Cacaio. Eu assisti eles.
SV: Ele era tocador de Sopapo?
Mestre Baptista: Ele tocava Sopapo, ele era mestre de bateria. Então, ele tocava todos os instrumentos de uma bateria. Para ser mestre de bateria tem que manusear todos os instrumentos de uma bateria, e ele era mestre de bateria, o Cacaio. O Bucha tocava Sopapo na Escola General Teles com ele, e o Boto tocava na Academia do Samba e era um dos melhores deles. O Boto era um baita de um negão, era um guarda-roupa. Tu ficava na entrada da prefeitura de Pelotas e, quando ele entrava lá na Dom Pedro II, há duas quadras, você ouvia o Sopapo do Boto tocando, ouvia aquelas baitas mãos tocando naquele instrumento. Então eu conhecia eles, era contemporâneo.
SV: E o Pássaro Azul, que era de Rio Grande, o senhor conheceu? Contam que era um negro muito grande também e que vinha tocar aqui em Pelotas e tocou com o Boto… O Boto tocava de um jeito e ele tocava de outro?
Mestre Baptista: É. Para tocar aqueles instrumentos tinha que ser grande. Eu conheci um bar aqui em Pelotas que se chamava Pássaro Azul… É aquilo que eu estou falando, tu montava os naipes de Sopapo, mudava a maneira de tocar e a afinação do instrumento.
SV: E, pelo o que o senhor sabe, o Sopapo é de Pelotas ou é de Rio Grande?
Mestre Baptista: Olha, a certeza que eu tenho é que ele é africano. Mas como foi parar na mão dos escravos eu não sei. Eu não sei direito a história do Sopapo, eu só sei que o primeiro Sopapo que apareceu aqui em Pelotas veio de Rio Grande, veio de trem.
SV: Trazido pelo Sardinha?
Mestre Baptista: Eu não sei quem é que trouxe, mas veio em uma entidade carnavalesca de Rio Grande, na General Vitorino. Isso é mais ou menos o que eu sei.
SV: Nós encontramos em pesquisas… Na verdade o professor Mário Maia encontrou uma aquarela de 1862, sobre Pelotas, onde ele viu um grupo de negros tocando um instrumento grande, feito de tronco de árvore, sendo tocado no chão, idêntico ao Sopapo. E a história que o rapaz de Rio Grande contou para nós é que tinha uma fábrica de processamento de carne, a Swift, e tinha uma cara dessa empresa, um executivo, que tinha este tambor em casa. Aí, o Sardinha, que foi o cara criador da primeira escola, que é a General Vitorino, era motorista da empresa e, por um acaso, viu na casa desse cara o tambor e levou o Sopapo para escola General Vitorino. No ano seguinte, saiu no carnaval e era tocado pelo Pássaro Azul, que era o Adão. E aí, no ano seguinte, eles vieram para Pelotas… Mas o que se diz é que já existia o Sopapo em Pelotas?
Mestre Baptista: É o que eu te falei, as histórias se confundem. Eu sei duas histórias: os escravos tinham este instrumento, mas não era igual a este que estamos fabricando hoje, eles eram feitos de tronco de árvore e, para mim, eu acho que eles usavam a cortiça, cavocavam por dentro, tirando o miolo da árvore, e depois colocavam no chão, acendiam a fogueira para afinar os instrumentos e aí eles batiam para os Orixás, batiam sentados nos instrumentos – essa é uma das histórias que chegou até mim, eu não sou contemporâneo dessa época. Eu conto das baterias de Pelotas para cá, que eu convivi e é o que eu sei. E, assim como vocês estão recolhendo dados, eu também estou, e o que eu sei é isso aí. Um instrumento já mais apurado, já mais sofisticado, veio parar aqui em Rio Grande trazido por um canadense. Mas nas charqueadas, com os escravos, já existia o Sopapo, os primitivos. Então, é o que eu sei e o que me chegou até agora da história do Sopapo.
SV: E, aí, depois desse período em que o Sopapo desapareceu da cultura, ele vem retornando nas escolas de samba depois do CABOBU? Não tinha mais Sopapo nas escolas de samba?
Mestre Baptista: Não. E não está retornando também. Alguma escola que tem Sopapo aí é porque foi doado pelo Giba Giba na inauguração do CABOBU. Todas as entidades, cada uma ganhou um Sopapo, e a Academia do Samba ficou com dois Sopapos, pois é aquilo que eu falei, que um cacique de terreira comprou um e, não sei o que houve, deu de presente esse Sopapo à Academia do Samba. Aí, tinha outro do Fica Aí, que também doou para a Academia do Samba. A Academia do Samba nasceu… Ela é oriunda do Clube Cultural Fica Aí, então a Academia do Samba deveria ter – ou tem – três Sopapos lá. Um que eles ganharam do CABOBU, do Giba, outro que esse cacique doou e mais um que foi doado pelo Clube Cultura Fica Aí. Ao menos eu vi três Sopapos lá na Academia do Samba. Agora, dizer que eles mandaram fazer ou que fizeram uma ala de Sopapos… Eu desconheço.
SV: E o que tu achas do carnaval hoje, atualmente? O carnaval de Pelotas, para onde se desenvolveu, musicalmente falando… O que tu achas? Qual a tua opinião hoje? Tu sendo homenageado por uma escola. Tem um samba enredo que cita o senhor. Primeiro eu quero que o senhor fale da homenagem e depois do carnaval, como está e para onde vai?
Mestre Baptista: Bom, em primeiro lugar, eu me sinto muito honrado e vaidoso com esta homenagem que a Ramiro Barcelos, uma das escolas mais tradicionais de Pelotas, está fazendo a minha pessoa. Eu nem sei se sou merecedor. Eu, inclusive, participei da gravação do samba com o Sopapo e com a cuíca e, lamentavelmente, não posso participar do desfile por causa do meu problema de saúde. Mas eu me sinto muito honrado, envaidecido e agradecido pela homenagem que a Ramiro Barcelos está prestando para o Mestre Baptista pelos serviços prestado ao carnaval de Pelotas. Eu vejo assim, se eu pudesse participar do desfile da Ramiro Barcelos, eu iria com muito prazer, com muito gosto, mas, infelizmente, eu não estou em condições de desfilar este ano. E, como eu estou falando, eu só tenho mais é que agradecer à diretoria da Ramiro Barcelos pelo reconhecimento, pela homenagem que eles me prestaram, pois eu sou citado no samba e, inclusive, esse samba foi feito em Porto Alegre, em Esteio, na Grande Porto Alegre, pelo Estevam, ex-petroleiro, ele trabalhava na Petrobras e é o autor desse samba. Ele já esteve aqui em casa e deixou o CD para mim aqui. Eu me sinto muito gratificado e cheguei à conclusão que o que eu fiz aqui em Pelotas não foi em vão. Alguém viu, e então eu não passei despercebido aqui. Então eu contribui de alguma forma e com alguma coisa com o carnaval de Pelotas. Hoje, eu vejo o carnaval de Pelotas… Eu que assisti ao carnaval do passado, vejo com muita apreensão e com tristeza. Não é esse aí… Não é o nosso carnaval. Eu que assisti ao segundo e terceiro carnaval do Brasil… Hoje nós perdemos para Florianópolis, perdemos para Porto Alegre, perdemos para Uruguaiana, perdemos para Recife, perdemos para Salvador, para São Paulo… E eu não sei em que lugar que está o carnaval de Pelotas justamente por ter fugido das características próprias do carnaval de Pelotas. E esse é o preço que nós estamos pagando por querer imitar o Rio de Janeiro, e ninguém consegue imitar o Rio de Janeiro, que é o maior carnaval do mundo. E, hoje, nestes dias bicudos que estamos vivendo, nesta fase com falta de dinheiro, é muito difícil de botar uma escola de samba na rua, pois se precisa de muito dinheiro. São fantasias caras, carros alegóricos, coisas para montar as alegorias, uma bateria – com o preço que estão os instrumentos… Ou seja, o carnaval de Pelotas está profissionalizado e é uma imitação muito rudimentar do carnaval do Rio. Eu estou vendo o carnaval de Pelotas com muita apreensão e, ao mesmo tempo, batendo palmas para essas pessoas que ainda conseguem fazer carnaval hoje com essa crise que esta aí. São heróis estes presidentes de escolas de samba e entidades carnavalescas de Pelotas. Eles estão trazendo o carnaval pelo braço, no peito e na raça, mas está muito longe do que foi o carnaval de Pelotas. Este carnaval que está aí, eu não sou muito chegado. Inclusive, ano passado, eu não fui e, neste ano, eu também não vou nem olhar. Não vou olhar porque é enxugar gelo, é chover no molhado, e eu vou ver o quê? As baterias na correria que está aí, para que isso aí? Para que essas correrias? Então, eu não gosto. Eles não estão sambando, eles estão marchando. Pobre dos passistas que vão sambando na frente da bateria… Quando chegam lá no fim, eles vão extenuados, cansados lá no fim da passarela. Então, por que a correria? E isso é também mais uma imitação do Rio de Janeiro. Eu sou mais favorável que o mestre de bateria faça o samba cadenciado e para que correria? Tem uma hora e vinte para andar trezentos metros ou trezentos e vinte metros, que é a nossa passarela aqui, não precisa correr. Por que correria? Cadencia o samba, dá tempo das pessoas se exibirem, se apresentarem, para o passista e para o mestre-sala e porta-bandeira se apresentarem… Mas não. Eles passam correndo na passarela, para quê? Eles estão marchando, e aí não é escola de samba, é escola de marcha. Então, eu vejo com certa apreensão, embora eu diga que esses dirigentes de escolas de samba e entidades carnavalescas daqui de Pelotas sejam uns heróis. Estes, depois que termina o carnaval, vão fazer contas para ver quanto ficaram devendo. Não é fácil não. E eu digo isso como fundador de uma escola de samba aqui em Pelotas, de eu ter que colocar dinheiro do meu bolso para poder colocar a escola na rua. O carnaval de Pelotas está profissionalizado e não tem fundo, não tem verba para isso aí. E, conforme vocês sabem, a LIC não está existindo mais, né? Então, a verba que está vindo de auxílio para o carnaval é da prefeitura. Agora deu uma melhorada, pois deu uma injeção de verba aqui no carnaval de Pelotas através do Unidos Pelo Samba, que eles não deram dinheiro, mas distribuíram vinte mil reais para cada escola através de instrumentos e botaram os dirigentes das escolas de samba dentro de um ônibus e foram para o Rio de Janeiro fazer compras de até dez mil reais – mais o instrumental que eles receberam, então, foi um total de vinte mil reais… Com isso acredito que já melhorou um pouco, já deu uma folga na tesouraria, no caixa dessas entidades. Enfim, eu vejo com apreensão o carnaval de Pelotas e gostaria que o carnaval participativo retornasse para o centro da cidade. Eu sou da época dos Dominós, da época dos Mascarados Cômicos, que faziam as pessoas rir. Eu que sou da época da bicharada que tinha aqui em Pelotas, eu que sou de uma época dos bonecos gigantes que tinham aqui, eu que sou de uma época do Sopapo e dos metais. Então, vejo o carnaval de Pelotas com muita apreensão e muita tristeza, sinceramente, porque sou testemunha desse carnaval de Pelotas aqui – e que o Giba Giba viu também -, que foi o segundo e terceiro carnaval do país, mas que agora acabou.
SV: O que o Sopapo simboliza para as pessoas, para os negros descendentes de africanos que estão aqui? De que forma o senhor acha que o Sopapo pode, como símbolo, de alguma forma, resgatar esta história que foi apagada? E como o Sopapo pode resgatar esta história dos negros, que foi esquecida assim como o tambor foi esquecido?
Mestre Baptista: Olha, a prova está no sucesso desse projeto do Giba Giba, o CABOBU, que ficou na história de Pelotas. Inclusive, eu montei uma orquestra de Sopapos e mais a minha bateria. E, quando chegava ali no Mercado, que ali era a apoteose, eu tirava os instrumentos da bateria e deixava só a orquestra de Sopapos funcionando e mais o pessoal, que hoje é do Odara, fazendo a Dança Afro. O Sopapo pode enriquecer muita coisa para a negritude aqui de Pelotas. Acontece que se não tem Sopapo como é que eles vão tocar? Tem que ter Sopapo. Se tiver Sopapo, aparece tocador de Sopapo. Aqui na minha residência tem vindo gente saber o preço do Sopapo, tem gente que quer sair nas baterias aqui, mas só toca Sopapo. Então, o que é que está faltando aqui? É o instrumental… E mão de obra existe, tanto é que o CABOBU provou isso aí. Eu fiz quarenta Sopapos para o CABOBU e, na época, eu devo ter saído com uns vinte sopapeiros e mais a minha bateria. Hoje, por exemplo, quem está divulgando mais o Sopapo, quem está difundindo este instrumental é Porto Alegre. Foi um sucesso muito grande este instrumental, os cinco que ficaram lá em Salvador, na Bahia, foi sucesso os dois que eu oficinei lá em Campinas… Pois o resto do Brasil não tinha conhecimento deste instrumento. Ele sumiu do mapa, e quem o resgatou foi o Giba Giba.
SV: O senhor conhece mais alguém que faça Sopapo?
Mestre Baptista: Olha, eu sei que tem, mas eu não conheço. Através do CABOBU foram criadas oficinas aqui para fazer Sopapo, e o Mário Maia é um deles. O Dilermando também é um deles, um dos alunos que aprenderam comigo aqui. Só que tu, para fazer um Sopapo, precisas de maquinário.
SV: E o CABOBU influenciou inclusive nisso? De passar adiante o conhecimento?
Mestre Baptista: Influenciou. Tinham oficinas, e eu passei conhecimento para eles. O Mário Maia já fez Sopapo e fez porque eu vi lá na universidade, fui lá e vi. Ele tem Sopapo feito por ele. Ele saiu com um Sopapo feito por ele na escola General Teles. Agora, em série, o único que está fazendo Sopapo acredito que seja eu. Pode ter alguém que saiba fazer sim, eu não sou o único, mas quem está fazendo em série sou eu.
SV: A gente ainda não encontrou…
Mestre Baptista: Pois é, mas deve existir sim.
SV: Fala alguma coisa aí que não te perguntei… Algo que o senhor queira falar.
Mestre Baptista: Em primeiro lugar, eu queria agradecer a oportunidade. E, para todos aqueles que verem este documentário, eu quero mandar um abraço do Mestre Baptista, um abraço da cidade de Pelotas a todas as pessoas que assistirem a este documentário. Dizer que usem este instrumento e que conheçam o Sopapo.