I Carijada Kaatártica – uma atividade para revisitar e vivenciar práticas de ancestralidade

O que se passou ali?
Nesses restos de uma história passada.
Cada elemento do fim conta um pouco do começo.

Neste mês de agosto, de 2023, mais precisamente entre os dias 3 e 6, o Coletivo Catarse/Ponto de Cultura e Saúde Ventre Livre revisitou origens da cultura originária do Rio Grande do Sul realizando a I Carijada Kaatártica. Localizada no município de Triunfo, no sítio dos Nicolaidis Cardoso, na região conhecida como Vendinha, a função reuniu a coletividade e mais alguns amigos numa produção artesanal de cerca de 25 kg de erva-mate.

Iniciamos numa jornada para buscar o soque em Rolante, levamos a Triunfo e partimos a organizar o acampamento, as estruturas e o carijo – quarta, quinta e sexta-feira (2, 3 e 4 de agosto).

Um adendo, na sexta-feira ainda teve coleta de mudas de Palmeira Juçara, semeadas pelos integrantes do Coletivo Catarse há mais de 6 anos, quando da realização de um Planejamento Estratégico no sítio. Esta, também, uma cultura de resistência, de luta ambiental e de sustentabilidade no domínio da Mata Atlântica – assista ao O Ser Juçara e entenda! ( ep1, ep2, ep3).

No sábado, um grupo seguiu para o Sítio “Segredos da Terra”, no Corredor dos Garcias, interior do município de Triunfo, de propriedade do médico veterinário e grande parceiro Fabio Haussen Pereira Junior, para fazer a colheita da erva-mate. No local, já planejando uma poda que mantivesse alguns pés para uma segunda carijada – no local, em início de outubro! -, realizou-se um pequeno manejo, com liberação de espaço para facilitar o rebrote dos pés de erva cortados. Cortou-se o suficiente para encher um carijo de 1,70m x 1,70m e de 1,10m de altura.

A chegada da erva no Sítio dos Nicolaidis Cardoso coincidiu com a chegada de um grupo de pessoas que veio diretamente da “Oficina de Vídeo para Defesa de Territórios com o Celular”. A ação, envolvendo os indígenas da Retomada Gah Ré, no Morro Santana em Porto Alegre, ministrada por Vitor Ribeiro, de Niterói-RJ, da ONG Witness e Plataforma Bombozila, foi realizada em continuidade ao projeto Coral, articulação latinoamericana de fortalecimento do vídeo como ferramenta de defesa de direitos socioambientais. De lá, chegaram representantes da etnia Kaingang e Guarani, além do próprio Vitor e demais colegas de Coletivo.

Eu tinha pouquíssima – pra não dizer nenhuma – informação sobre o carijo e a erva-mate como um todo. Quando participei da Carijada, tive a chance de estar junto e aprender sobre o processo, com gente comprometida com sua preservação. A dedicação das pessoas envolvidas e a forma como a brasa era mantida me deixaram muito impactado. Todas as etapas do processo, a convivência em torno do fogo, a cantoria, poder beber o mate recém-nascido no carijo, foi muito impactante pra mim. Senti muita confiança na postura do Coletivo Catarse em trabalhar junto com os povos indígenas para resgatar essa cultura ancestral. Como um carioca que não tem hábito de tomar o mate, acabei voltando com a erva para casa e apresentando paras pessoas na minha comunidade. E fez muito sucesso: equanto sorviamos, eu lhes mostrava os vídeos do fogo, do carijo, do soque, e lhes contava como as pessoas se organizaram coletivamente em torno dessa feitura. Algumas pessoas compararam o trabalho coletivo do mate ao que fazemos na pescaria artesanal de canoa aqui da região, quando nos mobilizamos para pegar, limpar e cozinhar o pescado. Dessa forma acredito que pude compartilhar com minha comunidade esse aprendizado e esse respeito pelo conhecimento ancestral da Natureza.” – relatou Vitor.

Com a coletividade completa, se deu início aos processos de encarijamento, partindo-se ao sapeco – primeiro contato da erva-mate com o fogo, quando se passam as folhas rapidamente pelas labaredas altas para gerar um “estralar” alto, demonstrando que as membranas da folha se romperam -, depois a quebra e montagem dos ramos, para, em fim, colocar e preencher o estrado do carijo com a erva-mate. Com o braseiro do sapeco, inicia-se o fogo, mantendo-se o controle de um fogo baixo e uniforme por pelo menos 12h – neste caso, pela umidade da noite, 14h. É a fase da secagem, lenta e gradual, uma noite longa, acompanhada pelos carijeiros que fazem a ronda, trocando causos e conversas ao pé do fogo sem descuidar jamais.

O amanhecer, o avanço do Sol chegou, a erva secou, saiu do carijo e foi ao cancheador, para a primeira quebra – não sem antes, ainda bem cedinho, sair o primeiro matezido, bueno, colhido pelas mãos defumadas e batido na mão de pilão, para, então, ir à cuia, que vai fazer sorver o melhor amargo para aquele momento.

A fase final é a música do soque mecânico batendo, um samba, cadombe, tambor sequenciado, afinando a erva cancheada e preparando a distribuição da erva a todos, cheia de conhecimento e história, mas não só mais aquela ancestral, mas, agora, também com a de todos que trabalharam.

Participaram desta carijada:
Têmis, Gustavo, Mainô, Marcelo, Bruno, Billy, Sheiná, Kaariuk, Liane, Ruwer, Najla, Alexandre, Cris Cubas, Vini, Vitor, Lorena, Van Fejj, Kanindé, Vherá Xunú, Eraldo, Estela, Rita, Navarro, Dr. Fábio e família.

Depoimento de Alexandre Fávero, artista, sombrista há mais de 20 anos:

É muito curiosa a história da erva-mate na minha vida, e eu acho que na vida de muita gente também, porque é uma bebida que a gente aprende a beber e a ver as pessoas consumindo desde criança aqui no Rio Grande do Sul. Mas eu tive as minhas primeiras surpresas com a erva-mate com o Barbosa Lessa e a Nilza Lessa, esposa dele, que possui um sítio chamado Água Grande, no município de Camaquã. Bom, Barbosa Lessa morreu já faz algum tempo e deixou alguns livros sobre essa tradição dos povos Guarani. E é muito interessante, porque lá ele produzia a erva-mate pelo método do barbaquá e usava um pilão de água, já que a propriedade dele era cheia de fontes naturais, cascatas… Então, ele tinha um monjolo, que era muito interessante, esse processo artesanal da erva-mate. E ali eu tive os meus primeiros contatos com esse tipo de produção artesanal, lá por 2002 ou 2003.

Já faz algum tempo que eu tomo mate com erva artesanal. Mas eu tenho certeza que todos os processos, todas as coisas que nós consumimos hoje, elas necessitam ter a nossa presença, a nossa capacidade de entender sistemicamente como é que essas coisas existem, de onde elas vêm, da origem que elas têm, mas, principalmente, como que isso vai se tornando parte do nosso hábito social. E esta experiência que eu tive com a carijada promovida pelo Coletivo Catarse me proporcionou essa experiência única de todo o ritual que existe em torno de uma planta, e a quantidade de esforços, de energia, de recursos que precisam para a gente alcançar um objetivo – que é produzir um lote de erva-mate pra beber o chimarrão.

O Coletivo Catarse trouxe essa proposta de a gente ter a vivência, onde nós nos experimentamos enquanto indivíduos, mas também enquanto um coletivo. E esse indivíduo e esse coletivo, em contato com a Natureza, com as relações sociais, dentro de um sistema de produção, que já se modifica um pouco desde a essência da origem, mas que nos aproxima demais desse entendimento… Qual é o nosso valor humano enquanto sociedade, enquanto conhecimento compartilhado? A experiência da carijada, que eu participei de todas as etapas do processo, foi fundamental nesse meu entendimento. Porque, para mim, como artista, como diretor de teatro, gestando um projeto já há algum tempo, que vem amadurecendo – a lenda da erva-mate, uma representação dessa história sobre o ponto-de-vista dos povos originários e que é muito romanceada. Então, entender, participar desse processo, me permitiu acessar outros conhecimentos, outras pessoas, outras formas de ver e entender essa energia que nos conecta a uma planta. Tem o seu lado sagrado, mas também tem o seu lado de consumo cotidiano.

Agora, enquanto escrevo, estou na Argentina, na cidade de Mendoza. Já faz uma semana que eu estou aqui circulando pela Argentina, e a gente vê o quanto que é importante para estes povos latinoamericanos essa planta na vida de cada um. Aqui se consome o mate diariamente, a qualquer hora do dia. Não se toma café como no Brasil, mas o mate é sempre um companheiro de qualquer hora. Também é possível perceber essas diferenças de relações entre cada povo, cada cultura e a forma como eles consomem e compartilham essa planta tão importante para nossas vidas.

Deixo, dessa forma, este depoimento aqui pra que a gente possa entender o quanto essa planta faz parte da nossa história com suor, com sangue, com guerra, com momentos de paz e, principalmente, em rodas onde a gente pode partilhar e conversar com as pessoas que a gente quer bem. Muito obrigado e um abraço.

Texto: Gustavo Turck
Fotos: Billy Valdez, Bruno Pedrotti, Têmis Nicolaidis.

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