A quem interessa o descarte da história da cidade?

As notícias divulgadas pela Matinal na semana passada me causaram indignação. Após decretar a “perda total” de um acervo de 240 mil pastas por conta das enchentes, a Prefeitura de Porto Alegre simplesmente jogou no lixo milhares de documentos relacionados a processos urbanísticos de imóveis construídos a partir de 1970. Mesmo sob questionamentos de especialistas e do Ministério Público, que alertam que o contato com a água não inviabiliza a sua recuperação, caminhões de lixo levaram embora grande parte do acervo que estava armazenado no prédio da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov).

Em 2023, defendi minha dissertação de mestrado, na qual analisei o conflito territorial, entre a Retomada Kaingang Gãh Ré e uma empresa que buscava erguer um grande condomínio no local (processo também foi acompanhado pela Matinal e, é claro, pelo Coletivo Catarse). Meus amigos mais próximos lembram o quanto fiquei obcecado ao acessar o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) desse empreendimento, leitura que se mostrou tão fundamental para a pesquisa, quanto o trabalho de campo junto à comunidade. Felizmente, esse EVU estava entre os 5% de arquivos digitalizados antes das enchentes por uma empresa terceirizada. Caso contrário, poderia hoje estar se misturando ao lixo, junto com outras milhares de pastas e documentos descartados sem cerimônia.

Lembro-me de como foi percorrer aquele arquivo de mais quinhentas páginas, me senti adentrando em uma “cidade de papel” ou abrindo alguma espécie de “caixa preta”. Era uma coleção de registros digitalizados, com páginas amareladas pelo tempo, planilhas manuscritas ou datilografadas, carimbos, mapas, plantas e recortes de jornais – fragmentos de uma silenciosa história do Morro Santana (e de Porto Alegre) nos últimos 40 anos.

Os anexos continham termos técnicos e procedimentos burocráticos que, a princípio, desconhecia. Admito que encontrei desafios para compreendê-los, mas através deles pude refletir sobre várias idas e vindas da aprovação do condomínio, as modificações em seu formato, altura dos prédios, número de apartamentos, de vagas de garagens, dentre outros aspectos do projeto.

Entre os achados no EVU, uma coleção de reportagens e pareceres que criticavam o funcionamento das pedreiras no Morro Santana e constataram o desmatamento de 27% da mata nativa da região entre 1956 e 1972. Outra descoberta: um documento de 1975 propunha a transformação de todo o Morro num Parque Natural Periférico (que jamais foi implementado). Essas informações eram completamente desconhecidas para mim, antes do contato com o documento, mesmo morando na região e pesquisando sobre a temática há alguns anos.

Parte dos registros descritos por Ruwer. Imagem cedida pelo autor, a partir do EVU do empreendimento.

Havia também indícios de irregularidades e inconsistências relativas ao empreendedor e ao projeto urbanístico. Dentre elas, a descoberta de que o terreno estava hipotecado ao Banco Central por mais de 30 anos por conta de dívidas do proprietário. Além disso, o projeto havia sido aprovado mesmo com a argumentação contrária de diversos conselheiros do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA). Aliás, uma descoberta na época repercutiu bastante nas redes sociais: uma pequena rasura de corretivo tinha alterado os limites de construção do terreno, permitindo a expansão da malha urbana sobre uma antiga área de preservação ambiental.

Esse EVU foi primordial para embasar denúncias, reportagens e estudos que auxiliaram na tanto na defesa jurídica da comunidade indígena pelo Ministério Público Federal (MPF) quanto no processo demarcatório em andamento junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Arquivos como os que estão sendo descartados não apenas documentam o passado: eles atuam diretamente nos acontecimentos, influenciam decisões, afetam vidas e redesenham o espaço urbano. A perda inestimável impactará não apenas arquitetos e urbanistas que manejam essa burocracia no cotidiano de suas profissões, mas qualquer cidadão que precise construir, regularizar ou reformar um imóvel.

A cena remete às páginas de A Menina que Roubava Livros, onde livros são incinerados na Alemanha Nazista para apagar ideias inconvenientes. Aqui, não houve fogo, mas o resultado é semelhante: o apagamento de registros que poderiam frear os interesses dos poderosos. A destruição desse acervo, em meio à revisão do Plano Diretor, não é somente um apagamento histórico, mas um golpe contra a memória urbanística da cidade. Sem documentos sobre o passado, apagam-se debates, eliminam-se entraves e aceleram-se obras que, livres de regras, avançam sobre as ruínas da cidade.

Luís Gustavo Ruwer  é mestre em Sociologia e integrante do Programa de Extensão da UFRGS Preserve Morro Santana. Contato: lgruwer@gmail.com

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