Sirley Amaro é daquelas carnavalescas da gema. Se sentar com ela em sua casa, pra um café com bolo recém preparado, lá virão álbuns e mais álbuns de fotografias da grande foliona que é. Suas histórias preencherão todo o tempo da visita e ainda faltará o que dizer. Dona Sirley é Mestre Griô com muito gosto e faz jus à preservação da tradição oral de sua cultura. Em Pelotas, na Estação Primeira do Areal. GT: Dona Sirley, a senhora fazia bonecas, né? A gente podia começar com a senhora nos contando um pouco sobre o receio que aqui existia sobre se fazer bonecas negras… Se pintavam bonecas e se tinha esse receio de falar na questão do negro… Não sei se tu recordas isso, mas por que o receio de resgatar essa história? Dona Sirley: Não, não. Eu falei da falta de informação que a gente tinha quando surgiu a biblioteca Griô. Foi essa parte que eu falei, essa parte aí, né? GT: Sim, mas tu usaste a palavra receio… Dona Sirley: É, uma coisa que me ajudou a incentivar… Tudo que apareceu na cidade sobre o negro eu gostei de participar. Mas a gente não tinha muita informação, a gente não tinha também acontecimentos, palestras sobre a história do negro e, quando um casal veio para organizar essa biblioteca, fui procurada pela mulher porque eu fazia a roupa de bonecas para ela vender e eu comecei a tomar gosto e descobrir que boneca negra era uma coisa que não existia e achei muito interessante. Quando eles foram embora aqui de Pelotas, inclusive, ela levou duas bonecas de modelo que ela usava como manequim. E ela tinha até o modelinho das roupas, e, quando ela foi embora, eu disse pra ela, eu não queria entregar aquelas bonecas para poder ficar de lembrança, e ela até não tava querendo que eu ficasse com as bonecas, mas ela acabou deixando, e eu tenho uma naquele painel que eu carrego… É muito interessante, a minha mãe fazia bonecas negras. Na minha infância eu brinquei com bonecas negras. Só que tem essa coisa do receio… Até hoje a boneca negra trás um estigma. Como até ainda hoje as pessoas usam o boneco de pano para fazer oferendas, por exemplo, faz o boneco e dá o nome daquela pessoa que tu queres fazer o bem ou o mal, e isso faz com que pessoas até hoje tenham medo de bonecas, ainda mais de pano. Lembro de histórias de pessoas que não gostavam que os filhos ganhassem bonecas negras pois achavam que as pessoas faziam bonecas e já colocavam alguma coisa. Isso tudo eu já vi no decorrer da minha vida. Nos dias de hoje, por exemplo, quando eu iniciei a exercer a minha Ação Griô aqui no Instituto de Menores, eu tentei fazer uma oficina, em uma das viagens que eu ganhei do projeto, eu aprendi a fazer umas bonecas com uma professora em Porto Alegre, e as bonecas não tinham feições, aquelas negras da África que não tinham voz, que não deixavam elas falar, e eu trouxe uma boneca para mostrar a eles e tentei fazer uma oficina, mas eles começaram a achar que era vudu, feitiçaria e falavam muito naquilo. E eu, como estava começando as ações e precisava ter a simpatia deles, achei que não ia ser uma boa, eu podia insistir, mas achei que não ia ser uma boa. Aquilo poderia se espalhar na escola, e eu ainda não era bem conhecida, eu estava iniciando nas ações de cultura negra. Bom, mas, voltando à história das bonecas, eu nesse meio tempo resolvi iniciar a fazer bonecas, a tentar fazer bonecas de pano, pois teve toda uma trajetória. Eu me lembro que nesse meio tempo o Eduardo, que é meu filho e que mora comigo e hoje é evangélico, ele já estava envolvido com rap e começou a sair da cidade para eventos. O Eduardo nunca estudou, ele nunca teve uma profissão definida e agora no decorrer da vida é que eu vejo que ele é um artista. Ele teve o dom de trabalhar em várias profissões, nunca teve uma profissão definida, mas tudo que ele inventou fazer… Ele trabalhou de pedreiro, inventou coisas para fazer… Logo que aumentou a rede telefônica, que tinha aqueles fios coloridos, ele inventava florzinhas e vendia. Ele vendeu sanduíche na praia e aí, depois, ele começou a aprender a fazer brinco e se interessou em artesanato. E, em uma das viagens, ele começou a se interessar pela parte negra, viu muita coisa de bambus, de sementes, então ele, de repente, desenvolveu o dom de artesão. Sempre gostou muito de trabalhar com coisas naturais, bambu, semente e, de repente, ele foi em um evento por aí e viu que tinha um pessoal fazendo bonecas negras e me disse: “Mãe, vamos fazer bonecas negras”. E aí ele me deu as dicas, e aí eu comecei a pegar o gosto de fazer bonecas. GT: E vocês, quando começaram a fazer essas bonecas negras, vocês fizeram algum tipo de raciocínio? Por que não existia? Que seria indispensável… Vocês tinham esse tipo de pensamento, Dona Sirley? Dona Sirley: Sim, justamente. Eu sempre tive uma coisa em mim. Nos dias de hoje eu me sinto assim – não com vaidade – uma divulgadora e uma incentivadora da cultura negra. Eu sempre achava falta de coisas do negro. A gente não tinha televisão, era mais o cinema, e, devido a certas restrições e ao racismo que a gente sofreu em Pelotas até uma certa época, partindo daquelas bonecas negras e da viagem do Eduardo, que me veio com essa informação, aí foi toda uma caminhada. Eu não tenho datas, mas ele começou a se especializar nesses artesanatos mais tipo afro, e as pessoas gostavam, e aí aconteceu de eu ir visitar o outro, que mora na Bahia, e aí descobri que lá na Bahia eles vendiam as bonecas. Bonecas que são feitas para a região lá, tanto que eu tenho bonecas naquele …
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