Carijo rebelde em Erval Grande

A fumaça do braseiro subia em direção às folhas e galhos. A água esquentava lentamente no fogo. O galpão protegia o carijo – originária estrutura para secar erva-mate – de eventuais pancadas de chuva ou do sereno da madrugada. Os viventes reunidos proseavam em roda.

A cena descrita bem que poderia ter se passado há décadas, séculos ou mesmo milênios, mas ocorreu em pleno 2025, nos dias 25 e 26 de janeiro, no município de Erval Grande, região norte do Rio Grande do Sul, quase na divisa com Santa Catarina. Mais especificamente, na aldeia Ponkry Chaig (Pinheiro Preto).

No pequeno território de cerca de quatro hectares, os descentes de Aparicio Pinto, fundador da comunidade, vêm resgatando o idioma, a cultura e as tradições Dofurêm Guaianá. O povo do tronco linguístico Jê teima em seguir vivendo nos planaltos do sul e do sudeste do Brasil, apesar da falta de reconhecimento oficial de sua existência. Entre tantas formas de resistência praticadas no local, estão o plantio e manejo de plantas alimentícias e medicinais em sistema agroflorestal, o cuidado com as nascentes de água e o que resta de Mata Atlântica, o respeito às araucárias e o trabalho com a erva-mate por meio da marca Seiva Rebelde.

Ali, no pequeno oásis de biodiversidade cercado de soja, um grupo de rebeldes se reuniu, contrariando a indústria das ervateiras, especializadas em produzir o mate de maneira mecanizada, cada vez mais rápida, com pouco sabor e muito agrotóxico. A aldeia escolheu o caminho oposto, fincado na ancestralidade do manejo da congonha (Ilex paraguariensis).

Os cerca de dez participantes presentes na atividade vieram de muitos cantos: das vizinhas Erechim, Erebango e Barão do Cotegipe, de Novo Hamburgo, Guaíba e Porto Alegre. Eram moradores de áreas urbanas, rurais e também da Tekoa Arandú Verá, aldeia guarani localizada na região. Vale destacar que um encontro tão diverso não seu deu por acaso, já que Seiva Rebelde é um nó importante na rede de articulação da Teia dos Povos em Luta no RS – uma aliança preta, indígena, camponesa e popular na luta por terra e território.

Juntos, os participantes da carijada podaram pouco menos de dez árvores em um erval que ficava a quase 800 metros acima do nível do mar. Trouxeram a erva para perto do galpão, sapecaram, desgalharam, montaram a estrutura do carijo e ali acomodaram as folhas sobre o estrado de taquara (vídeo abaixo). Por fim, sentaram ao redor do fogo por quase vinte horas.

Conversaram, cantaram, tocaram, sorriram, degustaram iguarias como churrasco, traíra e coração de bananeira assados, mbojape (pão preparado nas cinzas do carijo pelos guarani) cachaça de butiá e de erva-mate. Acima de tudo, cuidaram do fogo, para que não se levantassem labaredas e incendiassem a erva, que, quanto mais seca, mais inflamável se torna. Passadas as primeiras horas, começaram a tirar algumas folhas que já estavam secas dos cantos e passaram a degustar a nova erva.

Logo nesses primeiros mates já se antevia o resultado que viria a se confirmar depois do cancheamento e do soque: uma erva-mate maravilhosa, de amargor suave e sabor persistente que não se deixa “lavar” mesmo depois de muitas cuias. Do mutirão de trabalho coletivo autogestionado saíram cerca de 20 quilos desta deliciosa seiva, divididos entre os participantes.

Preparada a erva, pouco a pouco foram se aprochegando parentes, vizinhos e amigos. Sorvendo da seiva, circularam ideias, compartilharam sonhos e traçaram horizontes em comum. Mateando juntos, perceberam a necessidade de aumentar a roda, de se juntar novamente, olhar nos olhos, fortalecer os laços e aproximar os territórios em aliança. Assim, traçaram um sul, o de organizar uma Mateada dos Povos, espaço para um novo encontro, fortalecendo os territórios do norte do estado e organizando a solidariedade e o apoio mútuo. Há ainda um caminho a se percorrer, mas é certo que a erva-mate será elemento primordial para o encontro, como tem sido há milênios e entre tantos povos distintos.

Fotos: Giulia Sichelero e Bruno Pedrotti
Texto: Bruno Pedrotti
Edição do conteúdo: Anahi Fros
Apoio na Carijada: Bruno Pedrotti e Giulia Sichelero

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