Giba Giba
Gilberto Amaro do Nascimento é o homem dos 150 anos – não revela jamais a sua idade. Na sua caminhada de vida de artista e ativista, tem feitos que marcaram a história cultural do Rio Grande do Sul: fundou a Praiana, primeira escola de samba de Porto Alegre, e idealizou o CABOBU, um festival que retirou do esquecimento um dos ícones da cultura afrodescendente do extremo sul do Brasil, o Sopapo. Percursionista nato e filósofo contemporâneo, como o classifica Mestre Baptista, é homem de opiniões fortes contra os “burocratas” do Estado, a quem culpa pela não continuidade da produção cultural autêntica das regiões brasileiras. Na sua casa, em Porto Alegre. GT: Então tá, Giba. Vamos começar pelo começo. Pode inciar contando a história do Giba Giba com o Sopapo, indo lá para Pelotas… Giba Giba: A história com o Sopapo… A história do Sopapo, como eu vou dizer, é de amor à primeira vista. Quando eu via os caras tocando o Sopapo… Aquele som daquele instrumento… Eu ficava olhando, acompanhando. Aí, eu vim pra Porto Alegre, não trouxe Sopapo nenhum, nem pra tocar. E, por acaso, fundamos a escola de samba. E, por acaso, mais de cinquenta por cento da turma da escola de samba era de Pelotas. E, por acaso, nós botamos o Sopapo nas escolas simplesmente por uma razão, uma influência cultural. GT: Era a primeira escola de samba de Porto Alegre? Giba Giba: É, neste formato de escola de samba, foi. Pode ser que tivesse outras coisas com nomes de escola de samba, mas não eram. Os blocos de Porto Alegre eram grupos carnavalescos… SV: Bambas não era escola? Giba Giba: Era Grupo Carnavalesco Bambas da Orgia. Todos eram grupos carnavalescos, saíam só tocando marcha. Era uniforme, todos os grupos saíam tocando marchinha. E a fantasia também era uniforme, do porta-estandarte a… Não tinha porta-bandeira, não tinha mestre-sala, não tinha nada disso. GT: E não tinha Sopapo nesses outros? Giba Giba: Não, não tinha. O pessoal nem sabia o que era, aqui não tinha. Nem a gente sabia que aqui não tinha. É por isso que a cultura é uma coisa fantástica, porque ela não tem rótulo, ela não tem “isso é assim, isso é assado”. Ela é o jeito de cada lugar. E, quando as pessoas saem daquele lugar e vão pra outro, elas levam aquele jeito. É aí que vão ser formando as coisas, como qualquer coisa: a cultura alemã, a cultura italiana… Eles vão ali, ficam ali, eles não vão dizer “nós vamos fazer isso, nós vamos aquilo”. Não, já está feito ao natural, tudo foi feito com naturalidade. Perdeu a naturalidade quando começaram a enquadrar, a regulamentar todas as coisas que eram espontâneas. E aí foi descaracterizando e tal. E, depois, o processo cultural que se desenvolve com a racionalidade do dia a dia passou a ser controlado, perdeu seu efeito natural, perdeu sua espontaneidade. E é por isso que está esta conflagração brasileira de ninguém se entender. Porque está todo mundo… Foi mexido o jeito de ser de cada lugar, alterou o ecossistema existencial. Porra, merda! E é foda! GT: Como é que tu vês a contribuição deste tambor aí? Eu me lembro de uma frase que tu dizes numa outra entrevista, que a gente fez lá na Universidade, quando tu percebeste que não tinha mais Tambor de Sopapo… Antes de começar, antes de tu montares o CABOBU, e aí a gente fez aquela entrevista na Universidade, se lembra? A gente levou uma galera… E aí eu me lembro de uma frase tua: “Eu vi que não tinha mais Sopapo nas escolas de samba de Pelotas e pronto: está em extinção a matriz cultural do samba da minha terra”. Essa frase, pra mim, é muito forte, é muito simbólica. Como é que esse tambor se transforma na matriz cultural do samba? Giba Giba: Não é uma questão de se transformar. É quase que, praticamente, inconsciente. É como se fosse, por exemplo, o cara do Sopapo. Ele não nasceu assim: “Vou fazer o Sopapo pra ser o instrumento…”. Não. Cada região tem os seus tambores, a sua maneira de ser, o seu jeito de ser. E esses tambores, a maneira de ser, eles são confeccionados com a sua influência regional, com o que tem ali. As pessoas sempre dizem assim: “E esse instrumento aí, veio da África?”. Não, da África não veio absolutamente nada. Da África só veio a memória. Só, né?! A cultura africana é um barato por causa disso, porque os caras chegaram aqui zeradinho, sem nada, só com o paninho do corpo em cima. E reconstruíram a África fora da África, com a sua cultura, com tudo isso. Isso que é importante. E essa reconstrução é que faz parte dessa naturalidade. Quer dizer, em cada região do Brasil onde os negros foram espalhados… E aí ia ficando cada lugar com o seu jeito. É por isso que eu falo que, às vezes, as pessoas querem unificar o carnaval. Eu digo: “Pô, o carnaval só é unificado numa coisa, ele é unificado na alegria, na fantasia, na espontaneidade”. Mas não no enrijecimento de uma categoria. Cada lugar com o seu jeito de ser. E, quando o cara perde o jeito de ser, ele perde duas vezes, ele perde aquele jeito natural que ele era e jamais chegará a ser o outro. Então, é uma coisa que é assim. O Sopapo não é uma coisa misteriosa. Ele é um fundamento, acredito eu, de um instrumento que foi criado assim… Por exemplo, em Pelotas, quando a gente era criança, a gente criava um monte de instrumentos sem saber o porquê. Em cada zona da cidade, era normal: “Vamos fazer um bloco de carnaval? Vamos!”. Era isso. “Como vamos fazer? Quem sabe fazer tambor? Eu sei, eu sei!”. Aí, chegava no curtume que tinha em Pelotas, e os caras davam o couro pra gente, e cada um fazia um instrumento com a sua habilidade. Se o instrumento ficasse bom, o cara repetia. E …